A Música de Bonillo

Alexandre Bragion

 

Há também o som que se cala no retrato estático das pessoas quando a gente as ouve assim, de longe, com a memória do foi-não-foi na ponta dos ouvidos idos. Há sons plásticos em contornos clássicos, fotografias musicais encaixotadas no vido-visto-e-cantado de escritas-pautas partidas, de partituras perdidas, de concertos lendários. Que as pessoas tocam música mesmo quando caladas não se tenham mais dúvidas, nem dívidas. Pois o estar presente é por assim ser um concerto facto e feito – e de efeito místico, artístico, perfeito. De modo que, desde criança, ouço as pessoas vibrarem suas notas concretas, eretas e retas, no pentagrama findoso do existir. E, por fazer, quando morrem, no fim das barras duplas, operam elas silenciosos silêncios horrendos – frutos de um não mais se existir em vibração. Que tudo para, que tudo finda depois da barra, ao final da vida concreta vivida, sem ritornelo-retorno ou repetição.

Quando fecho por assim as vistas do engano-presente objetivo – Ledo e Ivo – tocam nos meus sentidos a orquestra de outrora em sons vividos mais com o espírito do corpo do que com a razão auditiva dos comovidos. E, à frente dessa orquestra bela e bélica, a força destra de um homem de gestos claros a apontar sempre para aquilo que equalizava seu modo-mundo sonoro-vital pretendido: um quase-pai, um quase-irmão, um quase-avô erroneamente percebido, maestro e amigo querido: Joaquim Álvaro Bonillo. Retrato sonoro de um tempo ido, de uma cidade que não há mais, de uma musical identidade engolida pelo fim de sua própria vida. Quem mais fala de ti, hoje, por aqui, amigo querido? Quem mais se lembra do seu nome e dos seus atos? Quem faz vibrar na batuta seus urros e brados, seus olhares calados de assombrosa interjeição? Quem, hoje, reconhece sua essência e contribuição dedicadas por décadas a esta sua adotada cidade-nação?  Eu mesmo, velho amigo, demorei quase duas décadas em pleno vão para escrever sempre esse tempo, quem foi tempo-canção.

No escuro dos olhos cerrados, escuto seus traços no ar – a cofiar a longa barba apostólica e corinthiana. Vejo no ar sua voz em canção ritmar desenhos melódicos, jogos contrapontísticos, contracantísticos, contra o mundo que se enviesava em coral desafino, em musical desatino. Assoviando uma de suas obras preferidas, lembro-me de nossas idas ao Mercado Municipal – quando entrávamos sem uma nota e saímos de pauta e cesta cheia, repleta de delicados presentes ornamentais que seus velhos amigos (imortais) do Mercadão faziam questão de lhe dar. Lembro-me de seus fatais maços de cigarro, estrategicamente colocados na parte debaixo da estante de música, ao lado rolo de papel higiênico canoro para o nariz. Carrego em mente também sua sempre fiel sacola plástica – dessas de supermercado – que era a sua mala 007 repleta de sonhos, chaves, isqueiros, caixas de fósforos e moedas. Lembro-me de suas quase-únicas poucas roupas e sapatos. De seus quase únicos poucos móveis, escondidos no porão em que você fez para você morada final, afinal, neste plano no qual os homens surdos pelo dinheiro nunca o deixaram ter morada fixa.

Ouço ainda a cada imaginária e imaginada condução sua, amado amigo, o som de teu desapego material subvertendo a lógica do conhecimento imaterial com o qual você nos brindava em forma de luz, de baforadas de cigarro e de palavras cantadas. No cômodo franciscano improvisado em cozinha, seus raros pertences eram nominados em grego. Na sua estante em forma de caixotes, seus livros de cabeceira: “Cem Anos de Solidão” entre dicionários de grego e latim, entre histórias concisas da música que lhe enchiam os dias e a vida. Sobre a cama, apoiada em latas de tinta, sua humanidade estendida ao lado da roupa usavada nos concertos. Na memória dos que o conheceram, assim, a certeza de ter realizado, em seu último ensaio, a sua derradeira e sonora vontade – quando, diante de teu corpo-presente, cumprimos seu desejo derradeiro (e antecipado semanas antes de sua partida, na ocasião em que, ante os protestos e desagravos dos músicos, você pediu para que – quando fossemos velar seu corpo – tocássemos da obra de Bach a sua preferida).

Que as pessoas tocam música mesmo quando caladas não tenho mais dúvidas, nem dívidas, como já te disse. Mas no teu caso, saudoso e amado amigo, creio que a sua música ainda toca por aqui, dentro de alguns poucos – mesmo que sob a surdez de pedra de quase toda uma cidade.

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Alê Bragion, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, editor do portal Diário do Engenho e cronista desta Tribuna desde 2017

 

 

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