Analisando o Salmo 22

Armando Alexandre dos Santos

 

Como vimos nos artigos anteriores, representações artísticas do Bom Pastor eram muito comuns nas catacumbas romanas. O Salmo 22, composto pelo rei Davi, é muito expressivo e geralmente o consideram, os exegetas, como prefigurativo de Jesus Cristo, que a Si mesmo designou como o Bom Pastor:

“Salmo 22 – 1. O Senhor é meu pastor, e nada me faltará; 2. colocou-me num lugar de pastos. Conduziu-me à água reconfortante, 3.converteu a minha alma. Levou-me pelos caminhos da justiça, por causa do seu nome. 4. Por isso, ainda que ande no meio da sombra da morte, não temerei os males, porque tu estás comigo. Tua vara e teu bastão me consolaram.5. Preparaste uma mesa diante de mim, à vista daqueles que me perseguem. Ungiste com óleo a minha cabeça, e quão precioso é o meu cálice que inebria!6. Tua misericórdia me acompanhará todos os dias da minha vida, a fim de que eu habite na casa do Senhor, durante prolongados dias.”

Trata-se de um salmo curto e denso, composto de apenas seis versículos. Nos três primeiros, a metáfora do rebanho conduzido por um pastor zeloso exprime a alegria, a felicidade e a segurança de quem vive sob a guarda de Deus, o Pastor por excelência. Nos dois seguintes, a mesma ideia é expressa com outra imagem bem familiar aos homens daquele tempo: o Senhor oferece aos seus servos fiéis um rico banquete, ao qual os participantes comparecem em grande estilo, bem arranjados e perfumados, e isso diante dos inimigos sobre os quais haviam triunfado. No último, à maneira de moral da história, é condensado o pensamento que informa todo o salmo: a misericórdia do Senhor jamais abandona o fiel que permanece na casa de Deus.

Preferi traduzir esse salmo diretamente do texto da Vulgata, porque os modernos tradutores, provavelmente em razão de uniformidade estilística, muitas vezes julgam acertado colocar o primeiro versículo no presente (nada me falta), em lugar de manter o tempo futuro (nada me faltará) estabelecido por São Jerônimo na Vulgata. Essa simples mudança de tempo verbal acarreta não pequena consequência na interpretação do salmo. Compilando e completando antigos comentaristas, São Roberto Belarmino (1542-1621) ressalta desde logo, nesse salmo, que ele exprime a esperança na felicidade futura dos bem-aventurados no Paraíso, aos quais nada faltará:

“Neste salmo se descreve a felicidade dos eleitos de Deus à semelhança das ovelhas conduzidas pelo melhor dos pastores. Davi, que era uma dessas ovelhas, por elas diz: “O Senhor me conduz e nada me faltará”, como se dissesse: Sou uma ovelhinha de Deus, e já que Deus é poderosíssimo, sapientíssimo e o mais excelente, por isso com confiança digo: “Nada me faltará”. Esse é o falar do homem que ainda está no bom caminho (da vida terrena) e vive na esperança (do Paraíso). Pois os bem-aventurados na Pátria (celeste) na realidade não dizem “Nada me faltará”, mas “Nada me falta”; porque longe deles estão o trabalho e a dor, e já entraram na alegria do seu Senhor. Os bem-aventurados ainda em trânsito e na esperança não podem dizer “Nada me falta” enquanto estiverem sujeitos a muitas paixões, mas dizem corretamente “nada me faltará”, porque, se tiverem fome, não lhes faltará pão, se adoecerem não lhes faltará médico, e assim por diante.” (RobertiBellarminiExplanatio in Psalmos. Paris: 1881, t. I, p. 129).

De fato, as virtudes teologais da Fé e da Esperança podem e devem ser praticadas pelos fiéis em trânsito (ou seja, enquanto vivem nesta terra e estão em regime probatório do qual dependerá seu destino eterno), mas eles estarão impossibilitados de praticá-las no Paraíso. Quem vê Deus face a face, como O veem os fieis na glória eterna, já não precisa mais de Fé; e quem já está na posse da felicidade eterna, nada mais precisa nem pode esperar.

Não há consenso, entre os comentaristas, sobre o momento em que Davi compôs esse salmo e o contexto em que o fez. Segundo alguns, foi na juventude, quando pastoreava as ovelhas de seu pai e se sentia conduzido e nutrido pelo Senhor, que para ele fazia as vezes de pastor; segundo outros, foi composto quando Davi, perseguido pela ira e pela inveja do rei Saul, precisava se esconder em locais ermos. Santo Atanásio (c. 296-373) interpreta esse salmo como sendo de ação de graças do povo hebreu, liberto do Egito e restituído à liberdade, ao Senhor seu Deus. Mas, de modo geral, os Padres da Igreja o analisam em sentido místico, identificando nesse pastor cantado por Davi, de modo prefigurativo, Jesus Cristo, o Pastor da Igreja e dos fiéis. (ScripturaeSacraeCursusCompletus. Paris: Migne,1845, t. XV, colunas 149-151).

São honorificamente designados como “Padres da Igreja” os grandes autores eclesiásticos dos primeiros séculos da Era Cristã, que gozam de imensa autoridade e foram de fundamental importância para a transmissão, aos séculos futuros, da Tradição conservada ininterruptamente desde a fundação da Igreja; é pela Tradição que chega até nossos dias o ensinamento oral dos Apóstolos, e é por meio dela que os católicos podem conhecer a interpretação autêntica das Escrituras. A Tradição chegou até nós primeiramente através dos Apóstolos e discípulos do Senhor; em seguida, pelos Padres da Igreja, e mais tarde pelo ensinamento dos Santos e Doutores, fiéis continuadores da Tradição apostólica, sempre sob a autoridade e a vigilância dos Papas, sucessores de São Pedro e Vigários de Jesus Cristo na Terra. São duas, conforme ensina a Igreja Católica, as fontes da Revelação: a Sagrada Escritura e a Tradição. A Tradição, que costuma ser grafada com inicial maiúscula, é constituída pelas “tradições não escritas, as quais, como que transmitidas de mão em mão, chegaram até nós desde os apóstolos, que a receberam ou dos lábios do próprio Jesus Cristo, ou por inspiração do Espírito Santo” (Concílio de Trento, sessão IV, de 8 de abril de 1546).

Os Padres da Igreja prestaram também outro papel histórico que seria injusto esquecer: eram em geral pessoas de grande cultura e, como tal conheciam a literatura e a filosofia dos clássicos antigos; estabeleceram, por isso uma espécie de intermediação cultural entre a Antiguidade Clássica e o Cristianismo.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

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