Gabriel Chaim
“Em nome de Deus, o Misericordiosíssimo, o Compassivo”, esta é a frase escrita em árabe na abertura desta coluna. Ela é constantemente repetida no cotidiano do muçulmano fiel antes de se iniciar quaisquer atividades para guiar e lembrar que nossas ações devem ser direcionadas a Deus através da misericórdia e da compaixão. O tema desta semana foca-se na beleza da Caligrafia Árabe e seu status maior dentre as artes consideradas Islâmicas. Saliento, como sempre, a ausência de qualquer interesse de pregação religiosa, apenas em introduzir e justificar os preceitos que embasam esta produção artística.
Assim como no Cristianismo, o Islã entende a “Palavra de Deus” como a expressão máxima da Revelação Divina. Contudo, ao invés de se ter o “Verbo feito Carne”, como na figura do Cristo, o Islã adiciona o “Verbo feito Livro” através da Revelação dada ao Profeta Muhammad na forma do Corão. Martin Lings, mestre sufi, alega que há alguns paralelos que podem ser traçados entre o evento da “Anunciação” à Maria e a “Revelação” ao Profeta Muhammad; segundo ambas as tradições (a cristã e a islâmica), Gabriel é o mensageiro que traz as “Boas Novas”; tanto Maria quanto o Profeta estavam reclusos em oração e meditação no dia do evento e, assim como a virgem que recebe o “Filho de Deus”, o Profeta analfabeto recebe o “Livro de Deus”.
Em seus primórdios, durante a vida do Profeta Muhammad, o Corão era recitado oralmente, sem forma qualquer de escrita (uma vez que o Profeta não sabia escrever nem ler). A tradição oral regia as tribos do deserto, a capacidade de se memorizar um livro inteiro de cor não era uma tarefa impossível para os primeiros muçulmanos. Contudo, com a abrupta expansão desta nova fé por territórios estrangeiros torna a necessidade de se compilar as Revelações ao Profeta em um livro evidente e a caligrafia faz-se “a mais nobre das artes, pois dá forma visível à palavra revelada do Corão” (Tradução do Autor – Burckhardt, 2009).
A linguagem do Corão se faz onipresente em toda manifestação criativa islâmica. Por ter se revelado na forma oral, sonora, através de recitações (como se fosse uma poesia), as dinâmicas da arte islâmica tendem a aludir a uma qualidade rítmica, vibratória como a do som, que reverbera por todas as artes e no cotidiano do muçulmano: “Pode-se dizer que a onipresença do Corão age como uma vibração espiritual — não há melhor forma de se descrever uma influência que é tanto sonora quanto espiritual — e essa vibração necessariamente determina os moldes e medidas da arte muçulmana; a arte plástica do Islã é portanto, de certa forma, o reflexo da palavra do Corão (…)” (Tradução do Autor – Burckhardt, 2009).
Abertura do Sūrat al-Fātiḥah no início do Corão de sete volumes do Sultão Baybars, Biblioteca Britânica
A caligrafia no Islã alude diretamente ao próprio ato da Criação. Nos parágrafos que inauguram o Evangelho de São João, na tradição Cristã, a Palavra (também encontrada como “Verbo”) é pelo qual tudo se fez: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. Ela estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ela, e sem ela nada do que foi feito se fez (…)” (João 1 1:3) e, paralelamente, o Profeta Muhammad diz: “A primeira coisa que Deus criou foi a caneta (qalam). Ele criou a tábua e disse a caneta, ‘Escreva!’ E a caneta respondeu, ‘O que devo escrever?’ Ele disse, ‘Escreva Meu conhecimento de Minha criação até o dia da ressurreição’. Então a caneta escreveu o que lhe foi ordenado” (Tradução do Autor – Martin Lings, 2005). Sendo assim, torna-se evidente o teor em que a caligrafia é tratada na perspectiva islâmica; Titus Burckhardt, historiador da arte, também aborda esta concepção da seguinte maneira: “Vamos mencionar também, nesta ordem de ideias, o símbolo corânico da ‘Caneta Suprema’ que regista o destino de todos os seres na ‘Tábua Secreta’ (Guarded Tablet); a Caneta (ou Calamus) não é ninguém mais que o Espírito Divino ou o Espírito Universal, e o maior título de nobreza atribuído a arte da escrita é o fato de ser uma sombra distante desse Ato Divino” (Tradução do Autor – Burckhardt, 2009). Titus também compara a caligrafia muçulmana à iconografia cristã, já que ambas dão forma à Palavra de Deus: “A mais nobre das artes visuais no mundo do Islã é a Caligrafia, e é a escrita do Corão que é sagrada por excelência; isso tem um papel mais ou menos análogo ao do ícone na arte Cristã, pois representa o corpo visível da Divina Palavra” (Tradução do Autor – Burckhardt, 1967). Contudo, diferentemente das metáforas visuais e do simbolismo da iconografia, a caligrafia se faz através de texto, das formas das letras que, em harmonia com sua premissa aniconísta, evita aludir à arte figurativa já que elementos terrenos não podem se comparar ao que se quer transmitir.
Gostaria de finalizar com uma consideração de Titus: “O Islã se considera a renovação da religião primordial da humanidade. A Verdade Divina foi revelada através da mediação dos profetas ou ‘mensageiros’, em diferentes eras para os mais diversos povos. O Corão é apenas a confirmação final, o ‘selo’ de todas essas inúmeras revelações, cuja sequência remonta a Adão; O judaísmo e o cristianismo têm o mesmo título de inclusão na sequência que as revelações os precederam ”(Burckhardt – 1967).
Biblioteca e arquivos nacionais do Egito, Shelfmark Masahif Rasid 54. Detalhe do frontispício iluminado.
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Gabriel Chaim, pintor, Mestrado em Artes Visuais Islâmicas e Tradicionais na Prince’s School of Traditional Arts; gabriel.chaim@ hotmail.com; instagram: @gabrielluizchaim