Armando Alexandre dos Santos
Como vimos no artigo anterior (“Nas catacumbas romanas, o início da arte cristã ocidental”) publicado neste jornal na edição de 2/4/2021, uma das imagens mais recorrentes nas catacumbas romanas, e que mais marcaram a arte cristã ocidental, em seus primórdios, é a do Bom Pastor, identificado com Jesus Cristo, que a Si mesmo designou como tal: “Eu sou o bom pastor” (Jo 10,11).
A figura do pastor e das ovelhas também é recorrente nas Sagradas Escrituras. No texto latino da Vulgata, o substantivo ovis (ovelha) aparece não menos de 191 vezes, enquanto pastor aparece 95 vezes e o verbo pasco (apascentar) 103 vezes. O substantivo pecus(geralmente usado em sentido coletivo, significando o conjunto do rebanho, embora também possa ser usado individualmente, para designar cada um dos animais arrebanhados) é usado 98 vezes. Ovile (aprisco, redil, abrigo próprio para ovelhas) se encontra 5 vezes e pastum (no sentido de pastagem para alimentação do rebanho) outras 5.
É bem compreensível que o seja, pois a Bíblia é a palavra de Deus, destinada a todos os homens de todas as culturas, mas não podemos esquecer que foi escrita, sob inspiração do Espírito Santo, por hebreus, com as referências culturais que eles possuíam; e sendo o povo hebreu essencialmente pastoril – como o eram, aliás, quase todos os povos da Antiguidade -era normal que a imagem do pastor e das ovelhas estivesse presente na sua cultura como referencial permanente. Também da Grécia, da Assíria e do Egito nos chegaram não poucas representações iconográficas ou literárias alusivas às atividades de pastoreio, tanto entendidas como uma atividade humana econômica, no moderno sentido do termo, como, simbólica e metaforicamente, significando cuidado, zelo, desvelo, proteção, governo. Na Babilônia e na Assíria antigas, os reis eram considerados – e a si mesmos consideravam – como pastores, aos quais os deuses haviam atribuído a missão de pastorear e cuidar de seus povos.
Na Bíblia, a palavra “pastor” não é usada em sentido unívoco, mas tem vários significados. Em sentido próprio, pastor é aquele que cuida das ovelhas, conduzindo o rebanho aos locais em que encontra alimento e água, protegendo-o dos perigos e reconduzindo-o ao abrigo no final do dia: metaforicamente, a Bíblia também chama de pastores os governantes dos povos, e os que cuidam das almas, instruindo-as e conduzindo-as para Deus; e também utiliza a mesma designação, contrario sensu, para designar as pessoas que exercem poder para o mal ou que têm influência sobre outras pessoas desviando-as do caminho do bem. No Antigo Testamento, Deus é o Pastor por excelência (Sl 22; 79,2) e em numerosas passagens dos Livros Proféticos há referências a um pastor futuro que salvaria o Povo de Israel de seus inimigos e o reunificaria; são textos prefigurativos do esperado Messias. Jesus Cristo a Si mesmo designou como o Bom Pastor e censurou os maus pastores que agiam como mercenários (Jo 10, 11-14) e também instituiu como pastor a São Pedro, quando lhe ordenou que apascentasse as suas ovelhas (Jo 21, 15-19); os Apóstolos e os sacerdotes em geral também são designados como pastores (Ef 4,11; 1Cor 9, 7; 1Pt 5,2).
Na Escritura, a imagem metafórica do pastor que conduz seu rebanho conjuga de modo admirável dois aspectos da autoridade que parecem se contrapor: o pastor é, ao mesmo tempo, o chefe, o líder, aquele que governa com a autoridade natural que lhe é própria, mas ao mesmo tempo é o pai, o irmão, o companheiro de todas as horas, boas e más, aquele que protege e defende o rebanho, por ele arriscando a própria vida. Sua autoridade é total e indiscutível, mas não se baseia na violência nem na coação, mas no amor.
Se são tantas as referências bíblicas alusivas à figura do pastor e das ovelhas, algumas passagens, entretanto, marcaram mais a tradição eclesiástica cristã e influenciaram a formação da imagem clássica do Bom Pastor, merecendo, por isso, uma atenção especial. As principais são quatro: em primeiro lugar, o Salmo 22, em que o rei Davi se coloca na posição de uma ovelha que confia plenamente no seu Pastor, que é o próprio Senhor Deus. Em segundo lugar, um trecho do Evangelho de São João, em que Jesus Cristo a Si mesmo designa como o bom pastor, que conhece suas ovelhas e por elas expõe a própria vida (Jo 10, 10-18). Por fim, os Evangelhos de São Lucas (15, 1-10) e São Mateus (18, 1-14), que reportam a parábola da ovelha desgarrada..
É da intelecção e da interpretação dessas quatro passagens que se compreende a ideia do Bom Pastor, que tanto impressionou os primeiros cristãos, a ponto de a representarem com frequência, iconograficamente, nas catacumbas, e que inspirou tantas reflexões aos autores eclesiásticos nos primeiros séculos de história do cristianismo e ainda hoje continua nos impressionando.
A parábola do Bom Pastor foi pregada por Jesus Cristo no final do terceiro ano da sua vida pública, poucas semanas antes de ser morto, a pessoas que pertenciam a um povo pastoril e que tinham todas as referências culturais para bem entendê-la. Ainda hoje, quase dois milênios decorridos, tal é a força dessa parábola que ela ainda é capaz de impressionar e comover profundamente os cristãos de nosso tempo, mesmo aqueles que já não têm nem de longe a vivência do pastoreio, como tinham os contemporâneos do Bom Pastor que pregou na Galileia e deu a vida por suas ovelhas. Pode-se bem imaginar o efeito psicológico profundo que ela causava aos cristãos dos primeiros tempos, oprimidos pela perseguição do paganismo e obrigados a celebrar seus cultos subterrâneos em catacumbas e vivendo sob permanente ameaça. A perspectiva mais ou menos próxima de sofrer morte violenta, testemunhando a Cristo pelo martírio, era algo inseparável dos cristãos daquele período. Compreende-se bem que a imagem do Bom Pastor, que pregou na Galileia, que deu a vida por suas ovelhas, que ressuscitou dos mortos e subiu aos céus, onde espera de braços abertos por nós, fosse muito consoladora para os cristãos daquele tempo.
Nada mais explicável, pois, que nas catacumbas estivesse tão presente a representação iconográfica do Bom Pastor.
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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.