Armando Alexandre dos Santos
As primeiras manifestações da arte cristã ocidental, ainda preservadas em nossos tempos, podem ser encontradas nas catacumbas romanas do primeiro ao terceiro século do cristianismo. São, na maioria, pinturas ou mosaicos, sendo pequeno o número de obras escultóricas, já que as esculturas parecem ter sido, durante muito tempo, objeto de desconfiança dos cristãos, pela semelhança notória que tinham com os ídolos pagãos.
Nessa época, a arte romana estava em fase de declínio, por uma série de razões de caráter econômico (retração econômica do Império,desaparecimento do mecenato, rareamento das encomendas remuneradas de obras de arte; empobrecimento de artistas e consequente fechamento de escolas e oficinas etc.). Esses fatores não atuaram por influência do cristianismo, como alguns autores supuseram, mas não deixaram de influir na primitiva arte cristã, que em comparação com o período áureo das artes clássicas greco-romanas parece pobre e decadente (LEROY, Alfred. Nascimento da arte cristã: do início ao ano mil. São Paulo: Flamboyant, 1960, p. 13).
De qualquer modo, sem embargo de ter surgido numa época de decadência que a influenciou, a arte do primitivo cristianismo apresentou uma novidadee um aspecto renovador de enorme importância: a sua universalidade– ou, para usarmos uma palavra sinônima de raiz grega, sua catolicidade.
Como observa D. Próspero Guéranger, o cristianismo foi a primeira religião de cunho mundial, que desde o seu início pretendeu atingir e conquistar toda a Humanidade e, assim, inaugurou a ideia de que o gênero humano (entendido no sentido mais amplo, no espaço e no tempo) tem uma relação fraternal. (Le sens chrétien de l´Histoire. Paris: LibrairiePlon, 1945, p. 17).Essa noção de fraternidade universal tem como base o mandado de Jesus aos Apóstolos:“Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura. O que crer e for batizado, será salvo; o que, porém, não crer, será condenado.” (Mc, 16, 15-16)
Antes do aparecimento do Cristianismo, todas as religiões e todos os deuses eram nacionais. Mesmo entre os hebreus, a religião mosaica era entendida como algo exclusivo do povo de Israel, e isso se consolidou de tal maneira que até entre os Apóstolos e os primeiros discípulos de Jesus Cristo houve grande resistência psicológica à ideia de uma pregação aberta a todo o gênero humano, fora dos limites do Povo Eleito. Os capítulos 10 e 11 dos Atos dos Apóstolos narram a conversão de Cornélio, o centurião romano batizado por São Pedro, e a profunda estranheza que tal fato causou entre os primeiros cristãos, que se escandalizavam com o fato de Pedro, sendo judeu, ter entrado na casa de um pagão e com ele se sentado à mesa.
Não havia, pois, no passado, conflito religioso propriamente dito. Todos adoravam os deuses de sua nação e compreendiam que os outros adorassem os seus. Daí o caráter muitas vezes fragmentário, nacionalista e, também, relativista da religiosidade dos povos antigos. Daí, também, a dificuldade de os romanos entenderem os cristãos, não compreendendo porque estes teimavam em adorar a um Deus único e exclusivista, em vez de colocarem, como faziam todos, uma imagem da sua divindade no Panteão Romano, junto com todos os demais e, assim, se adequarem ao establishment político-religioso do Império.
Também na arte essa mudança representada pela visão universalista dos cristãos se fez sentir. Superadas as distinções e barreiras nacionais, sociais e econômicas, a pregação cristã se dirigia a todos os povos, e a arte cristã, acompanhando a pregação, passou a visar também a Humanidade inteira. Esse ideal, a arte antiga, por mais esplendorosa e requintada que fosse, jamais tinha conseguido alcançar. “Se a arte antiga havia sido, em seus três quartos, de inspiração religiosa; se pintores, arquitetos e escultores do Egito faraônico mostraram-se essencialmente espiritualistas, considerando a vida terrestre como uma passagem; se os grego do VI e V séculos antes de Cristo também traduziram na pedra, no mármore e no bronze suas aspirações mais nobres, não existe entretanto antes do cristianismo nenhuma universalidade. Cada país concebe suas criações plásticas de acordo com suas crenças, e apesar das múltiplas influências recíprocas, permanece encerrado em suas estreitas fronteiras. Com o cristianismo, essas fronteiras desaparecem. A unidade da Fé origina a unidade das representações figuradas.” (LEROY, op. cit., p. 9).
Outra novidade da arte cristã foi seu caráter essencialmente didático. Mais do que deleitar os sentidos e encantar pela beleza ou pelo realismo, tinha ela um sentido pedagógico e catequético, servindo como apoio didático para as pregações e para o ensino religioso. Sua finalidade era representar visualmente as verdades e os símbolos religiosos. Embrionariamente, já nas catacumbas podiam ser entrevistas as primeiras tentativas de atingir um objetivo que muito mais tardese alcançaria plenamente nas catedrais medievais – “bíblias de pedra” assimiláveis e compreensíveis por todos, até mesmo pelos iletrados.
Muitos eram os símbolos religiosos que figuram nas catacumbas, extraídos de passagens da Escritura, ou alusivos a parábolas ou ensinamentos de Jesus Cristo: o peixe, o pão, a videira, o pastor apascentando suas ovelhas ou levando aos ombros uma ovelha desgarrada que conseguiu recuperar, as letras gregas alfa e ômega, navios e âncoras, pombas que voam (como as soltas por Noé) ou que pairam por cima das pessoas (como o Espírito Santo apareceu quando Jesus Cristo foi batizado no rio Jordão) etc. São frequentes as representações grupais de numerosas mulheres não identificadas, em atitude de oração, vestidas por vezes com trajes de patrícias romanas, muitas outras vezes com uma roupa de tecido grosseiro; parecem alusões às Santas Mulheres que tiveram a coragem de seguir a Paixão de Jesus Cristo no Calvário, enquanto quase todos os Apóstolos, temerosos, O haviam abandonado e se tinham escondido. Muitas também são as imagens hauridas na leitura do Antigo Testamento, com representações de Adão e Eva, de Noé com sua barca, do sacrifício de Abraão, do milagre de Moisés que faz jorrar água de uma pedra, da Arca da Aliança, do maná que cai no deserto para alimentar o povo hebreu, de Jonas salvo do ventre da baleia e Daniel liberto da cova dos leões etc.
Uma das imagens mais recorrentes, nas catacumbas, é a do Bom Pastor, identificado com Jesus Cristo, que a Si mesmo designou como tal: “Eu sou o bom pastor” (Jo 10,11). Voltaremos ao tema, na próxima semana.
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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.