A Linha Dourada

Gabriel Chaim

 

O texto desta semana trabalhará a ideia de Tradição nas Artes Sacras. Exemplos serão trazidos e comparados para que o leitor entenda as premissas essenciais que fazem uma arte ser “tradicional” e ressalto que não há julgamento de valor algum em relação às amostras, servem  apenas como caráter ilustrativo. Em seguida, gostaria de apresentar a perspectiva do artista tradicional contemporâneo em relação ao seu tempo.

De início, a palavra “Tradição” pode ser entendida como a expressão de costumes e atos solidificados ao longo das eras com mínimo espaço para modificação. Isso pode soar retrógrado a princípio, mas a cautela em preservar os paradigmas se faz importante na clareza em que as ideias originais são transmitidas. É necessário ressaltar, também, que as artes tradicionais têm pouco interesse na auto-expressão individual, porém na expressão da cultura coletiva, de um todo.

Etimologicamente, “tradição” vem do Latim “traditio”, que significa o ato de se transmitir, de se entregar algo. Nas Artes Sacras, o que se é entregue é uma mensagem divina em acordo com o enredo dogmático de uma determinada religião. Isso significa que, para uma obra ser considerada tradicional e sagrada, ela precisa estar em sintonia com duas coisas: a narrativa (a ideia) e a forma (a imagem ou som). Titus Burckhardt, historiador da arte, afirma que “(…) uma arte não pode propriamente ser chamada ‘sagrada’ somente nas premissas de estar embasada em uma verdade espiritual; sua linguagem formal precisa fazer jus a uma origem similar”. Isso se faz mais claro quando o historiador compara a Iconografia com a arte do Renascimento; de um lado, temos a expressão de uma narrativa de origem espiritual, metafísica e, em concordância, suas soluções formais são pouco alusivas ao mundo físico, pois não são oriundas daqui, como no caso Iconografia; enquanto que, no caso da arte do Renascimento, há uma narrativa similar pois as ideias são as mesmas, logo “embasada em uma verdade espiritual”, mas as soluções formais são naturalistas e fazem alusão direta ao mundo físico. Como exemplo, podemos observar nas imagens a seguir (em brevíssima análise) a diferença entre um ícone eslávico e um quadro do mestre do Renascimento Piero della Francesca retratando o mesmo tema, o batismo no rio Jordão; vemos que, no ícone, tudo é estilizado, do corpo humano ao cenário, inclusive a proporção das personagens possui hierarquia simbólica (a figura do Cristo é visivelmente maior);enquanto que em della Francesca, as figuras são anatômicas e suas proporções coesas com a perspectiva, exatamente como veríamos caso estivessemos fisicamente presentes no evento. Portanto, este paralelo expressa que uma arte não se faz “sagrada” porque seus temas são de cunho religioso (como na arte do Renascimento), porém seus aspectos formais também precisam dividir do mesmo princípio metafísico (sendo o caso do ícone).

                    Ícone eslávico do                                               Batismo de Piero della

                   batismo de Cristo                                            Francesca (Renascimento)

 

Cada era tem seu espírito, na Filosofia esse termo é chamado de “Zeitgeist”, alude a um humor, a uma dinâmica que rege cada época da história e, embora a tradição se mostre “rígida”, naturalmente ela sofre adaptações de acordo com esse “espírito do tempo”. No mundo de hoje, submeter-se à tradição pode se passar por um ato anacrônico, redundante; contudo, o trabalho do “artista tradicional contemporâneo” (soa até como um paradoxo), é acessar essa linha dourada de transmissão e fazer com que essas ideias se tornem presentes por meios disponíveis a seu tempo. Um ótimo modelo disso é uma belíssima igreja vitoriana (de 1859) chamada “All Saints Margaret Street” que faz parte do movimento “Neo-Gótico” na Inglaterra e que tive o prazer de visitar. Seu arquiteto, William Butterfield, projetou uma igreja gótica que foi erguida com o advento da tecnologia da época; sua alvenaria de tijolos (típica da Inglaterra do séc. XIX) é um exemplo da tecnologia aplicada no Gótico Vitoriano em contrapartida às pesadas estruturas de pedra do Gótico antigo encontradas na Europa continental. Em seu interior a geometria é um espetáculo de policromia arquitetônica, cada material compõe um rico mosaico geométrico que embeleza todos os cantos da construção.

Michael Bowie, o padre da igreja, disse que já presenciou muçulmanos visitando este templo cristão e, comovidos pela geometria de seus mosaicos, sentiram-se familiarizados (como nas mesquitas) e rezaram. Outra importante influência para a All Saints Margaret Street é a Teoria da Evolução de Charles Darwin, que é contemporânea à construção da igreja. Seu arquiteto, Butterfield, familiarizado com tais ideias, adaptou uma solução arquitetônica inspirada nas descobertas de seu tempo; ele utilizou de pedras repletas de fósseis nos degraus em direção ao altar para representar que toda criação exalta o “Santo dos Santos”.

Butterfield faz uma referência à tradição Judaica que Querubins rodeiam a Deus e clamam “Santo, Santo!”, descrita pela visão do profeta Ezequiel da “Glória de Deus” (Ezequiel 1:4-28). Querubins são retratados como criaturas terrenas com asas (geralmente nas figuras do leão, touro, homem e águia); são a alegoria que toda a Criação santifica a Deus e que tudo é em prol de Sua glória.

 

                                  Interior “All Saints Margaret Street”      

 

O desafio do artista tradicional contemporâneo é engajar-se com os arquétipos perenes transmitidos pelas tradições passadas e, de acordo com a capacidade da época em que se está inserido, promover se forma cristalina (limpa) a entrega das ideias que guiam à Verdade Original, ao Divino.

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Gabriel Chaim, pintor, Mestrado em Artes Visuais Islâmicas e Tradicionais na Prince’s School of Traditional Arts; e-mail: [email protected]; instagram: @gabrielluizchaim

 

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