Reler Thomas Mann. Ouvir Thomas Mann: a literatura contra o fascismo e o genocídio

Alê Bragion

 

Ouvintes alemães! Ouvintes alemães! Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça! Porque a guerra entra primeiro pelos ouvidos. São os ouvidos que captam como antenas o discurso que se faz nas arenas do mal planejador – do mal a planejar dor. Ouvintes alemães! Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça! Ouvidores de plantão! Cuidado com o mal a converter a nação, cortejada por condes Joões de última hora, em teatros de canções da morte e da opressão. Porém, tapai os ouvidos com cera – se preciso for – se ousar crer na melodia traiçoeira dos ilusionistas canastrões: que os mágicos farsantes são duplamente enganadores – primeiro porque não são mágicos, segundo porque são farsantes.

Quem tem olhos para ler, que leia a magistral recolha de discursos escritos pelo escritor alemão Thomas Mann durante seu exílio nos Estados Unidos, e transmitidos por ele mesmo, via rádio BBC, aos ouvintes da Alemanha entre os anos de 1940 a 1945. Reunidos em um único volume – intitulado “Deutsche Hörer! Radiosendungen nach Deutschland aus den Jahren 1940-1945” (ou na versão em português: “Ouvintes Alemães: discursos contra Hitler”, publicado no Brasil pela Zahar) – o livro é um berro nos ouvidos de todos (ouvintes ou não, alemães ou não). Nele, vibram doloridos alertas contra estados militarizados, racistas, eugenistas e demoníacos afins.

Transmitidos aos alemães que se arriscavam numa escuta clandestina – e a países vizinhos como Holanda, Suíça e Suécia –, os discursos de Mann nasciam de um esforço hercúleo do escritor e de países democráticos que combatiam o mal do nazismo. Para tanto, Mann gravava seus áudios na radio NBC, em Los Angeles. Depois, a gravação seguia de avião a Nova York e era transmitida via telefone à BBC, em Londres. Somente aí a BBC conseguia colocar no ar, para alguns países da Europa em guerra, a voz do escritor exilado, exaltando seus compatriotas a reunirem forças e esperanças para sobreviverem ao chorume corrosivo chamado Hitler e a seu diabólico séquito de imbecilizados nacionalistas.

O próprio Hitler ouvia as transmissões e a Mann havia condenado em uma de suas ignóbeis ameaças públicas. Ao saber disso, Mann escreveu: “dessa boca já saiu tanta porcaria que me causa uma ligeira sensação de náusea ouvir meu nome sair daí”. Conjurando a nação a resistir, asseverou também o escritor: “essa guerra poderia ter sido evitada, e o fato de ela ter acontecido é uma pesada carga moral para o nosso lado. A guerra tem antecedentes sinistros.”

Marcante é ainda o tom emocionado com que Mann abre sua primeira transmissão, em outubro de 1940: “Ouvintes alemães! É um escritor alemão que vos fala, um escritor que, assim como sua obra, foi proscrito pelos governantes alemães, e cujos livros, mesmo que tratem daquilo que é mais alemão, de Goethe, por exemplo, só podem falar a povos estrangeiros e livres.” Liberdade, ouvintes! Ouvi-o!

Herr Mann! Livres sejamos, sempre, para lê-lo e ouvi-lo. E que seu registro seja mostra viva do mal que a humanidade é capaz de fazer contra si mesma. E que nós, no caminho do exílio nacional ao qual estamos sendo submetidos como nação, saibamos ler e ouvir a História – nesse exíguo interlúdio para a desgraça final que talvez ainda nos reste – e possamos, a partir dela, mudar a nossa própria trajetória de povo que se quer heroico, mas segue adormecido e igualmente imbecilizado.

Ouvintes brasileiros! Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça. Quem tem olhos para ver, que veja! Em muito breve não haverá mais o que se feito.

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Alê Bragion, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, editor do portal Diário do Engenho e cronista desta Tribuna desde 2017

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