A entrevista com o entrevistador João Umberto Nassif

João Umberto Nassif, em pé, e o professor Henrique de Carvalho Cosenza – Crédito: Arquivo Pessoal

 

A Tribuna Piracicabana tem, há vários anos, o privilégio de ser o veículo de comunicação utilizado pelo jornalista João Umberto Nassif para divulgar o magnífico trabalho que faz, como entrevistador. Nosso colaborador Armando Alexandre dos Santos cuidou do tema. Agradecemos a ambos pela ajuda de sempre.

Personagem extraordinariamente rico de conhecimentos, de amizades e recordações acumuladas ao longo de décadas de trabalho jornalístico – no rádio e na imprensa escrita – o jornalista piracicabano João Umberto Nassif passou os últimos 22 anos – dos 66 que tem agora – fazendo História Oral. Mais precisamente, coletando material para que no futuro historiadores e sociólogos disponham de fontes primárias abundantes e confiáveis para compreender a realidade de Piracicaba e região nas últimas décadas.

Nesses 22 anos, Nassif entrevistou perto de 1000 pessoas, de todas as categorias sociais e representando os mais variados setores da sociedade. Homens e mulheres, velhos e novos, ricos e pobres, todos os que têm algum depoimento interessante a dar caem sob o olhar do curioso que é João Umberto Nassif. Com jeito e simpatia, sabendo se adaptar à psicologia de cada entrevistado, inspirando em todos confiança desde o primeiro momento, Nassif consegue obter relatos fantásticos que, sem ele, seriam esquecidos e fatalmente desapareceriam da memória coletiva da cidade.

Pois esse grande entrevistador foi, desta vez, o entrevistado…

Foi no dia 23 de março de 2019, no Lar dos Velhinhos de Piracicaba que nos encontramos. Nassif é, como voluntário, diretor do Lar dos Velhinhos e administrador de uma grande livraria de livros usados, que funciona no local sem qualquer objetivo lucrativo. É um sebo sui generis, que não renova seu estoque comprando livros, mas apenas recebendo doações; e não repassa os livros para os interessados com intuito comercial, mas apenas os vende a preços módicos para auxiliar a manutenção daquela tradicional instituição beneficente que funciona há mais de 100 anos e é a mais antiga casa de repouso de idosos em funcionamento, em toda a América Latina. O trabalho de classificação e catalogação dos livros recebidos é feito pessoalmente por Nassif e sua esposa Vera, auxiliados por uma equipe de voluntárias, escritoras e poetisas participantes de grupos literários atuantes na cidade.

O tema da entrevista foi o trabalho desenvolvido por Nassif, no rádio e na TV, coletando centenas de depoimentos de pessoas de todas as categorias sociais. O leque de entrevistados aberto por Nassif é enorme. Não creio que no Brasil outro jornalista tenha conseguido entrevistar e, mais do que isso, deixar registrado por escrito, depoimentos de tanta gente. No futuro, será impossível escrever uma História de Piracicaba e Região nas últimas décadas do século XX e nas primeiras do XXI sem consultar o acervo reunido por Nassif. Modestamente, Nassif se limita a coletar os depoimentos e raramente faz, no texto de apresentação de cada uma das entrevistas, comentários e análises sobre os entrevistados. Mas, sem dúvida, o público fica esperando que ele próprio ainda produza uma obra que seja uma visão de conjunto sobre o universo constituído pelos quase mil depoimentos paciente e perseverantemente.

Curiosamente, Nassif, o grande entrevistador, confessou-me que nunca tinha dado uma entrevista na vida… Foi a primeira e, segundo ele espera (creio que está enganado!), será a última. Privilégio não pequeno, pois, me foi concedido, e agora é colocado ao alcance dos leitores de A Tribuna.

Vamos à transcrição da conversa:

Armando Alexandro dos Santos: João Umberto, você aqui em Piracicaba, despretensiosamente e talvez sem se dar conta do vulto total do seu trabalho, vem há muitos anos fazendo uma coisa fantástica, que é entrevistar muita gente da cidade e da região, para guardar seus depoimentos numa espécie de banco de dados que funcione como memória coletiva de Piracicaba. No seu critério de seleção das pessoas a serem entrevistadas, você é extremamente amplo, extremamente inclusivo. Você traz para deporem desde prefeitos, desembargadores, professores universitários, empresários do mais alto nível, até pessoas simples, mas que têm um depoimento interessante a deixarem para a História ou para a compreensão da nossa sociedade atual. Nesses quase vinte anos de trabalho, você já entrevistou perto de mil pessoas. Seus depoimentos estão transcritos e publicados, em parte na imprensa escrita, em parte nos livros que você publicou e em parte no seu blog na internet. Isso, no futuro, permitirá uma visão extraordinariamente rica e bem documentada da sociedade piracicabana no atual período histórico. Esse seu trabalho é fantástico e mereceria ser bem mais amplamente divulgado. Acredito, João Umberto, que pode haver em outros pontos do Brasil, pessoas como você, que fazem coisas parecidas, mas acho muito difícil que alguma delas tenha ido tão longe como você foi. Ou seja, tenha entrevistado individualmente um número tão grande de pessoas e tenha perseverado, sistematicamente, durante tanto tempo no trabalho, não apenas gravando os depoimentos (o que já seria notável), mas editando-os e publicando-os. Seu trabalho de transcrição e editoração, sempre consciencioso e fiel, deve ter-lhe tomado milhares de horas de esforço. Por isso, repito que o exemplo de João Umberto Nassif precisaria ser mais conhecido em nível nacional, porque é muito ilustrativo do que já foi feito e do que ainda pode ser feito em matéria de história regional. Daí eu ter querido ter esta conversa com você, para lhe pedir que me fale de suas próprias impressões sobre o seu trabalho: como é que nasceu essa ideia, por que você teve esse interesse nisso, quais são os seus critérios na seleção dos entrevistados, quais os ensinamentos que você auferiu com esse trabalho, qual sua experiência ao cabo de 22 anos etc. etc. Por favor, fale disso…

João Umberto Nassif: Bom dia, Armando, eu fico muito lisonjeado com essa introdução que você fez. Pela nossa amizade é que eu me proponho a falar alguma coisa, porque eu não vejo nada assim. Eu digo que o maior beneficiário nessa história, sou eu. Sem dúvida! Eu aprendo muito com as pessoas, ao valorizar e dar conhecimento dos valores de muitas pessoas que estão em nosso meio e cujas realizações os mais jovens desconhecem. Há fatos, nesses vinte anos, muito curiosos. Eu por dez anos fiz as entrevistas ao vivo, em rádio. E em rádio, quando é ao vivo, a emoção aflora, particularmente, no entrevistado, e também quem está entrevistando tem que ter um jogo de cintura razoável, porque às vezes a coisa derrapa, e você tem que voltar na linha. O rádio, infelizmente eu fui obrigado a parar por questões de ordem pessoal, pela dificuldade de conciliação de horário com outra atividade. Todos nós sabemos que o rádio, o jornal, no interior particularmente, não nos dá muito retorno ou não dá, às vezes, retorno suficiente para você sobreviver ou ter uma qualidade de vida que permita desfrutar de alguns dos pequenos prazeres, como ler um livro, por exemplo, fazer uma pequena viagem, nada de muito ambicioso. Mas até isso, às vezes, é limitado. Então, você tem que abrir mão de certas coisas. Mas essas entrevistas eu fiz por dez anos no rádio e concomitantemente, por quatro anos, em rádio e jornal. Aí eu fui convidado pelo Evaldo Vicente, diretor de “A Tribuna Piracicabana”, para transcrever no jornal a entrevista que já tinha saído no rádio, e o negócio colou! E é interessante porque às vezes o Evaldo me fala: – “Pôxa, veio fulano aqui buscar 50 exemplares, veio fulano aqui buscar quarenta exemplares!” Entendeu? Porque ele quer distribuir aquilo para a família e para os amigos…

AAS: Isso marca uma vida para muita gente, ter uma página de jornal publicada no nível dos seus trabalhos, marca a vida inteira. É quase uma condecoração, compreende? É sair da esfera privada e pelo menos a pessoa ter a ilusão de que chegou à esfera pública. É um salto, salto qualitativo na vida!

JUN: Eu tenho duas situações opostas, bem assim nos dois extremos. Eu recebi um e-mail de uma professora da UNICAMP agradecendo por entrevistar o pai dela, um senhor no meio da multidão, desconhecido, mas que tinha uma história de vida muito interessante. E tem o outro extremo, que é o de um juiz de direito que preserva a entrevista enquadrada em moldura atrás na sala dele…  Acredito que isso para mim, é muito significativo. Agora, o mais interessante disso tudo é que a gente foi colecionando esses fatos. Eu tenho só um sentimento, é de não poder, não ter recursos financeiros para publicar tudo em livros. Eu já publiquei dois livros, mas eu gostaria de publicar todas as entrevistas para que não se perdessem. E isso aí, é um sonho meu. Então, se um dia eventualmente acontecer de eu ter a condição de ter esse privilégio, eu farei isso, quem sonha alcança, tenho fé…

AAS: Lembre-se do verso de Fernando Pessoa: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce!”

JUN: Eu vou me lembrar a partir deste momento. Mas nessas minhas andanças, fiz algumas descobertas interessantes, que eu reputo extremamente valiosas. Uma delas: você, com certeza, conhece Lawrence da Arábia. Sabe qual a nacionalidade dele?..

AAS: Inglesa.

JUN: Não, ele nasceu em Botucatu. Aí vem toda uma história, toda uma história… O Barão de Serra Negra, nascido em 1822 aqui em Rio das Pedras, que na época pertencia a Piracicaba, chamava-se Francisco José da Conceição. Ele mantinha uma linha de mulas transportando cargas desde o litoral até o Mato Grosso, quase na divisa com o Paraguai. E na guerra com o Paraguai, ele prestou serviços para o exército, levando armas e suprimentos. E recebeu pelos seus serviços uma boa recompensa financeira, além do próprio título de barão. E com isso ele plantou café, daqui do Taquaral, que hoje é um bairro de Piracicaba, até a cidade de Botucatu. Era uma extensão considerável!  E ele tinha filhos, cada um com uma função diferente. Um filho tomava conta da fazenda, outro filho ficava em Santos, cuidando da exportação, e outro filho, Manuel da Conceição, operava na Bolsa de Londres, mas residia na França, em Paris, de onde ele distribuía, inclusive, café para vários países da Europa. Em Londres, ele teve um caso extraconjugal com uma inglesa, e resultou que a inglesa ficou grávida; ele trouxe então essa inglesa para a fazenda de Botucatu, cercou a fazenda com capangas, homens armados, providenciou toda a assistência médica. A inglesa deu à luz um menino. Dali a seis meses a criança estava já em ponto de poder viajar e foi com a mãe para a Inglaterra, onde o Manuel arrumou um casamento dela com um inglês, deve ter entrado dinheiro na história, com certeza, e essa criança era o Lawrence da Arábia!

AAS: Agora, como é que sabe isso e qual é a base para dizer que isso é verdade?

JUN: Bom, porque eu fiquei sabendo através de um descendente colateral dele, Renato Leme Ferrari, que é bisneto do jurista Francisco Morato, que por sua vez era casado com uma filha do Barão de Serra Negra, irmã do pai do Manuel Conceição. Independente disso, eu fui confirmar essa história com outra pessoa, o advogado Armando Moraes Delmanto, que se dispôs a ir até a Inglaterra e a França, procurar algum rastro. Só que, eles, os ingleses, eliminaram tudo, se encarregaram de eliminar qualquer documentação, por causa da fama do Lawrence, porque ele é um herói inglês. A única coisa que sobrou nos arquivos, e o Delmanto viu, foram os recibos de remessa de dinheiro do Conceição, daqui, para o filho, na Inglaterra. Esses recibos estão arquivados na Inglaterra, mas não permitiram que o Delmanto tirasse cópia, mas ele viu.[1]

AAS: Que curioso, mas que curioso! Isso aí é uma bomba! E daria para se escrever um romance.

JUN: É uma bomba! E dava um belo romance! Mas, além desse, tem um outro fato… mais peculiar a Piracicaba, que a filha do Mussolini esteve em visita aqui na Usina dos Morganti, no bairro do Monte Alegre. Dessa visita à mansão dos Morganti só eu tenho fotografia.

AAS: A filha do Mussolini, creio que se chamava Edda. Era casada com o Conde Ciano.

JUN: Isso, exatamente!

AAS: Isso me faz lembrar uma história (desculpe, é só um pequeno desvio…) do Churchill com o genro dele. Não sei se conhece.

JUN: Não.

AAS: O Churchill tinha um genro, Anthony Eden, que também era político e que em 1955 sucedeu ao sogro como primeiro-ministro. Os dois não se entendiam bem e viviam trocando farpas. Certo dia, conta-se que o Eden, para provocar o sogro, lhe perguntou: “Meu sogro, na sua opinião, qual foi o maior homem de toda a Segunda Guerra Mundial?” Era o tipo da pergunta maldosa, porque obviamente o Churchill não poderia dizer que era ele próprio… Resposta do Churchill: “Foi o Mussolini.” – “Por que o Mussolini?” – “Porque mandou fuzilar o genro dele”. De fato, Mussolini mandou fuzilar o Conde Ciano.

JUN: (risos) Muito boa essa! O bairro do Monte Alegre, constituído em torno da usina dos Morganti, tem umas histórias interessantíssimas. Por exemplo, foi o pintor italiano Alfredo Volpi (1896-1988) que pintou a capela. Isso foi numa fase inicial da carreira dele, ainda em estilo tradicional, antes de ele ter aderido ao estilo mais moderno. Esse trabalho tem uma história curiosíssima, narrada por pessoas que estavam em volta dele, enquanto ele estava aqui no Monte Alegre. O Volpi tinha auxiliares. Então ele fazia os traços básicos das figuras e os auxiliares completavam as pinturas. E ele enquanto isso tomava um belo de um vinho…

AAS: E via os outros trabalharem.

JUN: E ia almoçar, deitar. Aí lá pela tarde, ele acordava e lá ele ia ver como é que estava o negócio. Então, ali na realidade, A parte intelectual, a parte artística, é dele. Mas a parte operacional, na verdade, foi de terceiros. Isso pouquíssimas pessoas sabem. A capela do Monte Alegre foi construída para batizar Marisa Morganti, neta do usineiro Pedro Morganti (1876-1941).

AAS: Aliás, que linda é aquela capela!

JUN: É linda! E eu tive a oportunidade de conhecer Marisa Morganti, tive contato com ela e fiz uma entrevista na antiga mansão dos Morganti, que já não pertencia mais a sua família (hoje pertence ao Lar dos Velhinhos, por doação da família Silva Gordo, que adquiriu o imóvel dos herdeiros de Pedro Morganti). E ela foi me mostrando: olha isso era meu quarto, isso aqui era onde eu comia; aqui, eu brincava de boneca. Ela tinha uma casa de boneca que o avô mandou fazer, de estrutura! E quem fazia aquela comidinha que toda criança faz era o mordomo, Ieda. Para comer de verdade! Era um japonês, chamado Ieda, que fazia a comida. Então levavam a comida pronta, lá. Até isso tinha.[2]

AAS: A menina com a comida de verdade, brincava de dar para as bonecas?

JUN: Brincava e comia também, com as amiguinhas e aquela coisa toda… E a capela foi feita para ela ser batizada, com pia batismal e tudo o mais. E eu tive o privilégio de tirar a fotografia dela ao lado da pia batismal em que ela foi batizada. Isso é uma coisa, para mim, extremamente histórica.

AAS: Não deve ter sido fácil para o Morganti conseguir a pia batismal. Porque teoricamente, para haver pia batismal, precisava ser uma paróquia. Era difícil uma igreja que não era sede de paróquia ter pia batismal. Ele deve ter conseguido isso, por algum relacionamento que tinha com os meios eclesiásticos. Isso não era habitual, uma sede de fazenda ter uma pia batismal, porque aquilo, na realidade, naquele tempo era uma capela de fazenda.

JUN: É, de fazenda. Só que ele era político, tinha influência, criou o Açúcar União. Era um sujeito que tinha um poder de fogo altíssimo! Mas, voltando um pouquinho, eu tive também o privilégio de entrevistar duas pessoas cegas, muito interessantes. Uma delas foi o Prof. Luís Alberto Aguiar Godoy, que mora aqui no Lar dos Velhinhos. Ele é interessante porque não tem revolta nenhuma com sua cegueira.

AAS: Eu fiquei profundamente impressionado pela entrevista dele! Ele chega a recomendar que as pessoas que veem fechem os olhos durante 15 ou 20 minutos, todos os dias, como se fossem cegas, e pensem, reflitam. E se tornarão pessoas melhores.

JUN: Ele diz que agora, depois que perdeu a visão, vê as coisas numa dimensão superior, ele passou a se autoconhecer melhor…

AAS: Portanto, ele deu um salto no aperfeiçoamento dele rumo ao que Sócrates chamava de “perfeição da paideia” que é o autoconhecimento. Quer dizer, é um passo rumo à sabedoria, à filosofia de vida que ele deu por meio da cegueira. Eu fiquei realmente impressionado com essa entrevista.

JUN: Eu também fiquei, essa entrevista mexe com a pessoa. Também me impressionou uma outra entrevista, com um senhor conhecido como Dito Cipó, que me disse uma coisa um dia, (inclusive a minha esposa estava do lado e eu fiquei até meio chocado quando ele falou). Ele me disse: – “O senhor consegue ver as pessoas por dentro”. Eu fiquei meio assustado, porque isso tem o lado bom e tem o lado também perigoso, não é? Ah. mas, fiz uma entrevista muito curiosa também com o nosso querido prefeito Barjas Negri. E eu sempre tive curiosidade em saber porque ele se chamava se Barjas, e não Jarbas. Aí ele me contou que sua família morava em São Paulo, e na casa vizinha morava um compadre do pai dele chamado Rodrigo Barjas. E o pai falou para mãe: – “Olha, nós vamos batizar nosso filho com o nome do compadre, em homenagem, para prestigiar.” Naquele tempo tinha muito disso. A mulher achou que ele ia batizar a criança com o nome de Rodrigo… mas ele foi lá e batizou de Barjas. E a curiosidade maior do fato, é que por uns caminhos aí que a gente tem, eu consegui encontrar uma fotografia do tal Rodrigo Barjas. E no começo da entrevista com o prefeito Barjas Negri, eu mostrei a fotografia e perguntei se ele conhecia aquele homem. Ele não conhecia. Então eu disse: ­- “Esse é o Rodrigo Barjas, que lhe deu o nome.” Ele ficou pasmo! Ele não esperava, então foi uma curiosidade. Outra curiosidade, muito interessante: eu estava aqui no Lar dos Velhinhos, onde sou diretor há uns 15 anos, mais ou menos, e faz parte do trabalho da gente ver o que está acontecendo com o pessoal que mora aqui, embora não seja a minha área. E eu vi um senhor parado, um negro com uma pilha de cadernos, daqueles bem escolares, bem grossos, e fui conversar com ele. Conversamos, conversamos, conversamos. E, na ocasião, eu fazia com uma diretora da TV Cultura, que mora aqui, um programa na Rádio Educadora, voltado para os idosos daqui. E eu vi que aquele senhor estava escrevendo poesias, poesias e mais poesias e contos e não sei mais o quê. Aí, eu achei muito curioso aquilo e mostrei para quem conhece de fato poesia, que é a Dona Thais. E ela ficou impressionada com a métrica da poesia. A curiosidade da história é que ele por 30 anos tinha trabalhado como coveiro. “Seu” José Ferreira é o nome dele. E eu fiz a entrevista com ele e começamos a ler os poemas dele na rádio. Ele morava no pavilhão geral, o pessoal pegava no pé dele, sabe como é… – “Ei, aonde vai com o caderninho?” Ele passou então a morar num apartamento com outra pessoa e passou a tomar conta da biblioteca interna que nós temos aqui. Depois, ele passou a morar num flat, sozinho. Então ele se sentiu valorizado, como merecia. Então, isso para mim não tem preço. E tem uma outra coisa, que não sei se convém publicar ou não, eu vou deixar a seu critério. Tenho um número de entrevistas, não muito grande, que foram filmadas e gravadas, mas nunca foram publicadas. Só tomaram conhecimento delas o entrevistado, a pessoa que filmou e eu. Só os três. E fizemos um pacto. Essas entrevistas não seriam publicadas enquanto nós três estivéssemos vivos. Mas deixamos tudo preparado para elas se tornarem públicas quando morresse o último de nós. São entrevistas que a gente chama de entrevistas fechadas. Qual é o objetivo dessas entrevistas fechadas? É deixar depoimentos para história que não firam pessoas vivas, e também que não mascarem a verdade. Porque a gente pega um livro de história, você como professor sabe, que a história que é contada ali é uma história para ser lida, mas nem sempre corresponde à verdade. Nessas entrevistas, há coisas fantásticas, fatos, assim, extremamente interessantes.

AAS: São muitas que estão nesta condição?

JUN: Não, acho que devem ser umas dez ou doze entrevistas, de cinco ou seis horas cada uma.

AAS: Naturalmente, nem sei, nem você disse quais são as pessoas. Mas, contar que existe isso eu posso?

JUN: Sim.

AAS: No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, existe uma coisa parecida, um setor reservado chamado “Arca do Sigilo”. A pessoa entrega o seu arquivo com a condição de só ser aberto para consultas 50 anos depois da sua morte. Recentemente ia ser aberto, não sei se já foi, o arquivo secreto do embaixador José Carlos Macedo Soares.

JUN: Nossa! Do Macedo Soares?

AAS: Do Macedo Soares. Ele deixou lá. Não sei se deixou todo o arquivo, mas deixou muita coisa lá.

JUN: Há nesses arquivos pessoais coisas que você sabe que podem acabar prejudicando alguém.

AAS: Sim, certas coisas às vezes até devem ser destruídas. Uma pessoa consciente sabe que certas coisas não podem ser fisicamente conservadas. Têm que ser destruídas.

JUN: É, os descendentes vão carregar um peso que não merecem.

AAS: Por isso eu costumo dizer aos meus alunos que uma lição de história, inteiramente fidedigna, inteiramente exata, nós só teremos no dia do Juízo Final. Aí, será Deus contando a História como ela realmente se passou. Não tem como esconder. Todos os mistérios da humanidade serão resolvidos nessa hora. Todos os pactos, todas as tramas, todas as conspirações. Também, no sentido contrário, todos os atos de desapego, de virtude, de desinteresse heroicos, que muitas vezes ficaram sem reconhecimento público, nessa hora todo mundo vai saber. É lindo isso, é um panorama grandioso.

JUN: Sem dúvida. Eu tenho mais algumas coisas, por exemplo, eu entrevistei Moacir Franco. E ele me falou uma coisa… Agora, vou jogar, vou puxar a brasa para minha sardinha, tá? Sem falsa modéstia, ele me disse: – “Você é o melhor cara que me entrevistou até hoje, porque você me faz pensar. Você não foca linearmente na ocorrência, como todo pessoal que me entrevista, você vai, volta, volta, vai, entendeu?”

AAS: Sim, sim. Você vai insensivelmente seguindo um fluxo mais psicológico do que cronológico.

JUN: Exatamente. Samuel Pfromm Netto me disse uma vez: – ”É uma pena que o Estadão não te conheceu”.

AAS: Samuel foi dos piracicabanos que eu mais admirei. Era um homem extraordinário. Eu o recebi mais de uma vez no meu apartamento, com sua esposa D. Olga, também piracicabana.

JUN: Ele tinha uma inteligência fantástica! Essas são coisas que marcam a gente de tal forma… Há também o caso de um Prêmio Nobel da Paz que eu entrevistei, fui o único que o entrevistou em Piracicaba, a imprensa inteira nem se tocou que ele estava aqui na cidade. Era o agrônomo Norman Borlaug (1914-2009), chamado “o pai da revolução verde”. Ele desenvolveu métodos de agricultura que revolucionaram profundamente a produção agrícola, fazendo o solo produzir muito mais. Ele veio a Piracicaba, eu fiz um plantão no hotel em que ele estava e consegui fazer uma entrevista com ele. Piracicaba inteira nem soube que ele estava aqui, nem foi um órgão de imprensa entrevistá-lo. Se fosse um jogador de futebol ou um cantor, possivelmente teria corrido para entrevistar. Também o Juca Chaves eu entrevistei. É uma pessoa fantástica, de uma humildade muito grande. Eu entrevistei também vários bispos, como o piracicabano Dom Moacyr Vitti (1940-2014), Arcebispo de Curitiba, e o também piracicabano Dom Irineu Danelon, Bispo de Lins, que está aposentado e mora aqui no Lar dos Velhinhos.  E entrevistei generais, como o general Edson Diehl Ripoli, nascido aqui em Piracicaba, e o general João Camilo Pires de Campos, que atualmente é Secretário da Segurança do Estado de São Paulo e tem uma casa aqui em São Pedro. Entrevistei vários padres, professores, pastores, dois profissionais de circo, e fiz um passeio, interessantíssimo por todos os sindicatos, entrevistando todos os sindicalistas, antes da crise dos sindicatos, para ter um perfil do meio, saber como é que é. E o meio deles é muito semelhante.

AAS: Sim, sim. O que eles têm em comum é muito mais do que o que os separa .

JUN: Muito mais. A tendência agora [com o fim da contribuição compulsória para os sindicatos] é mudar o perfil, ainda bem que fui a tempo. Entrevistei também várias freiras, entrevistei o Frei Augusto, Mons. Juliani, Mons. Jorge, da Vila Resende, Mons. Jamil Abib, da Catedral.

AAS: Mons. Jamil tem uma cultura muito grande.

JUN: Sim, dele o que saiu foi uma entrevista meio rabiscada, porque na verdade o perfil dele é muito maior do que aquilo que saiu.

AAS: É verdade, ele não fala muito de si próprio, mas é um intelectual, um grande colecionador, um grande connaisseur de arte.

JUN: Sim, ele tem uma cultura requintada.

AAS: E uma experiência de vida que não é brincadeira, ser esfaqueado como ele foi… Eu estava presente, assisti à cena. Foi numa Missa que ele estava celebrando em rito maronita para a colônia árabe de Piracicaba, durante a homilia. Foi impressionante.

JUN: Entrevistei também o Maestro Ernest Mahle, que deu uma ótima entrevista, falando de sua infância na Alemanha de antes da Segunda Guerra, de sua família, de como veio para o Brasil, de como nele despertou a vocação para a música etc. etc.[3] Entrevistei também várias pessoas com mais de cem anos, como Dona Olga Marchiori, que morreu com 102 anos, e Dona Maria, que foi dona da Radio Difusora. E uma senhora que foi a fundadora da Sorveteria Paris, que ficava onde é hoje o Banco Safra, na esquina da Praça José Bonifácio com a Rua Prudente de Morais. Era pastelaria e sorveteria. Era uma delícia o sorvete. Entrevistei professores da ESALQ, como Roland Vencowski, Francisco Mello e outros mais. Entrevistei o Nélio Ferraz de Arruda, que foi prefeito e teve uma história curiosíssima: ele decidiu fazer uma praia no rio Piracicaba, perto do Regatas. Ele achou que praia tem que ter areia… Então, caminhões e caminhões de areia transformaram tudo aquilo numa linda praia… mas na primeira enchente foi tudo embora, não sobrou nada. Entrevistei cantadores de cururu, é muita gente mais. As figuras que entrevistei, todas elas acabam deixando um legado, vamos dizer assim, um ensinamento, uma experiência. Dão trabalho, mas valem muito a pena, são muito gratificantes.

AAS: Quanto tempo leva, em média, cada entrevista, para fazer e para transcrever?

JUN: Incluindo o deslocamento, para arredondar, levo em torno de duas horas para gravar cada entrevista. Para transcrever, depende muito da pessoa entrevistada. Há pessoas que são prolixas, pessoas que quase não falam, pessoas que jogam inúmeros dados que você tem que checar, às vezes não batem, é preciso dar uma acertada neles, tudo isso toma um tempo razoável, no mínimo são umas 8 horas de trabalho.

AAS: Claro, e tem que ser tudo muito colado à gravação, tem que ser eximiamente fiel ao que a pessoa disse.

JUN: Sem querer, já deixei gente, até sem a intenção, mas eu acabei deixando a pessoa de saia justa.

AAS: Sei, sem querer fez uma pergunta que de forma tocou num ponto doloroso.

JUN: Foi uma coisa involuntária. Eu já entrevistei algumas pessoas que eu não publiquei, por uma questão de respeito e até para corresponder à confiança que a pessoa depositou, fazendo o depoimento.

JUN: É, a gente acaba conhecendo coisas… Uma entrevista muito interessante, muito curiosa, foi com um pai de santo. Eu fui ao terreiro dele. Era um negro baiano. Eu perguntei a ele o que ele fazia. Ele me respondeu: – “Olha, sou baiano, não canto, não jogo bola, o que você acha que eu posso ser? Só posso ser pai de santo.” Nós conversamos muito, ele explicou aquela coisa toda. E aí, no final da coisa eu perguntei se ele podia fazer duas previsões, quem seria o próximo presidente e se o Brasil ganharia ou perderia a Copa do Mundo. Ele respondeu que o próximo presidente seria uma mulher. Só havia duas candidatas, a Dilma e a Marina… E disse que o Brasil perderia a Copa. Aí, eu disse a ele: – “Escuta, agora vamos falar o português claro. Tá certo, você tem seus búzios, coisa e tal, você tem uma espiritualidade, mas é só isso?” Sabe o que ele me respondeu? Ele falou: – “Meu filho, eu leio três jornais por dia.” (risos). Às vezes, pessoas leem alguma entrevista e me pedem o telefone do entrevistado. Eu nunca dou, sem antes ter pedido autorização.

AAS: Compreendo. É preciso ser extremamente ético num trabalho desses, em que você está trabalhando baseado na confiança das pessoas.

JUN: Sim.

AAS: Esse é um dos muitos méritos do seu trabalho, João Umberto. Se em cada cidade do Brasil houvesse uma pessoa que fizesse isso com seriedade e constância como você faz, daqui a 50, 100 ou 200 anos, seria possível futuros historiadores e sociólogos traçaram um retrato histórico ou sociológico da nossa época muito mais profundo e muito mais fiel do que quem consultar coleções de jornais. Os jornais noticiam muitos fatos políticos, mas nem de longe entram nas reentrâncias da vida social como as suas entrevistas. Parabéns, portanto, pelo seu magnífico trabalho. Faço votos para que não apenas o prossiga por muitos anos mais, mas também consiga realizar o sonho de publicar tudo em livros.

[1] O depoimento do Dr. Renato Leme Ferrari foi publicado em: NASSIF, João Umberto. Paulistenses. Piracicaba: Edição do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 2013, vol. II, p. 43-52. Quanto às pesquisas do Dr. Armando Moraes Delmanto sobre o assunto, ver: http://www.armandomoraesdelmanto.com.br/?area=artigos&id=5

[2] O depoimento de D. Marisa Morganti Ayrosa Falanghe pode ser encontrado na íntegra em: https://blognassif.blogspot.com/2016/03/marisa-morganti-ayrosa-falanghe.html

[3] O depoimento do Maestro Ernest Mahle foi publicado em: NASSIF, João Umberto. Paulistenses. Piracicaba: Edição do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 2013, vol. II, p. 187-196.

 

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