A Catedral e o Homem

Gabriel Chaim

 

O terceiro texto desta série é dedicado à catedral gótica, sua concepção formal e dogmática. Gostaria de trazer o leitor comigo para uma viagem à Europa Medieval, ao Antigo Oriente Médio e, se tudo suceder bem, a dentro de si.

De maneira concisa, o período Gótico é entendido como uma fase da arte europeia ocidental no decurso de sua era medieval. Titus Burckhardt, historiador da arte, alega que o contato com culturas orientais (em especial o Islã) auxiliou no desenvolvimento desta arte. Este contato é justificado da seguinte maneira: na península Ibérica ocorria a “Reconquista”, a campanha militar para expurgar o Califado de Córdoba das terras de Espanha e Portugal e, ao Leste, as Cruzadas capturaram a cidade sagrada de Jerusalém dos sarracenos. Esta exposição dos europeus ao caldo cultural deixado pelos mulçumanos fomentará a evolução da arte Gótica e suas primeiras manifestações ocorrem na França, em meados do século XII d.C., no campo da arquitetura, mais especificamente nas construções de catedrais e, consequentemente, o foco do texto de hoje.

Para que entendamos o que a catedral gótica representa, precisamos voltar 2500 anos, muito antes da fé Cristã, para o Exílio do povo de Israel na Babilônia no século VI a.C. Para os que não estão familiarizados com o Exílio, trata-se de um período em que os israelitas foram feitos cativos nas terras estrangeiras da Babilônia, longe de Jerusalém, por aproximadamente 70 anos. Lá, um profeta chamado Ezequiel recebe uma visão que revolucionaria a fé do Deus de Abraão: aos 30 anos de idade, às margens do rio Quebar, o profeta Ezequiel depara-se com o que chamará de “a aparência da Glória de Deus”; ele descreve o que vê como um tipo de carruagem celestial; um trono carregado por quatro criaturas fantásticas (certamente não faço jus algum a descrição fabulosa do profeta e convido o leitor a ler Ezequiel 1:4-28). Nesta visão, Deus o transporta para a cidade de Jerusalém, para o templo de Salomão, o local mais sagrado do judaísmo, e Ezequiel observa que os israelitas remanescentes nas terras de Judá não cumprem o acordo com Deus estabelecido por Moisés e passam a adorar ídolos de civilizações vizinhas, então Ezequiel vê a “Glória” deixar o Templo e seguir leste, para a Babilônia, junto do povo exilado. Isso é de extrema importância para o desenvolvimento da fé judaica (consequentemente para o Cristianismo e, posteriormente, o Islã), pois a presença de Deus não mais é encontrada em um só local (o Templo de Salomão), mas passa a estar junto do povo de Israel em uma concepção abstrata, metafísica.  O livro de Ezequiel termina com uma promessa messiânica: após o Exílio, um descendente do Rei Davi reconstruirá Jerusalém e restaurará o Templo a sua antiga “Glória”.

Jesus de Nazaré, da linhagem de Davi, 500 anos depois de Ezequiel, retomará essa narrativa. Trabalhará a noção de que a presença de Deus é absoluta e não se restringe à geografia (como dentro do Templo de Salomão, por exemplo) mas habita o ser humano. Isso torna-se mais claro na famosa passagem bíblica que Jesus expulsa os mercadores do templo e é questionado sobre sua autoridade em fazê-lo e responde:  “‘Destrua este templo, e, em três dias, Eu o reconstruirei’. Replicaram os judeus: ‘Em quarenta e seis anos foi construído este templo, e tu afirmas que em três dias o levantarás?’. Ele, porém, se referia ao templo do seu corpo”. (João 2:19-22). Portanto, a concepção formal das catedrais Góticas gira em torno da alegoria do corpo humano, o corpo do Cristo; é comum deparar-se com elementos arquitetônicos que remetem à anatomia humana dentro do design das igrejas Góticas.

 

(Diagrama medieval da planta rasa de uma catedral Gótica)

 

Portanto, como toda Arte Sacra, a arquitetura também serve a uma narrativa simbólica que está em sintonia com os dogmas de sua determinada fé, mas em três dimensões. No caso do Cristianismo, como tudo orbita a figura do Cristo, é natural que as manifestações arquitetônicas (assim como todas as outras manifestações criativas desta religião) façam referência à narrativa do “Deus-Homem”, do divino que habita a humanidade como sua “imagem e semelhança”. Contudo, não é a mera condição humana que traz o homem em comunhão a Deus, mas suas ações referenciando as do Cristo. A catedral Gótica age como um imenso símbolo desse relacionamento entre nossa concepção terrena (o corpo feito do barro) e nossa essência divina (o fôlego de Deus que nos faz viventes) e, de maneira mais sutil, as paredes das catedrais são feitas de elementos terrenos, mas seu interior é solenemente dedicado em essência ao plano espiritual, fazendo dela uma alegoria do verdadeiro templo de Deus, o próprio ser humano.

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Gabriel Chaim, pintor, bacharel em Design Gráfico (ESPM), Mestrado em Artes Visuais Islâmicas e Tradicionais na Prince’s School of Traditional Arts, Mestrado em Pintura no Wimbledon College of Arts.

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