Ciclo no Ovo

Alê Bragion

 

No ninho o ovo, novinho, qual ano novo. O pai, girando em asas e rasantes rasas, guarda a vida a eclodir como vinho fresco em taça a erguer-se – celebrante e celebrada – em dias de festas animadas em louvor da vida. A mãe, sobre o porvir da existência nova, ova o adventozinho que bica e bate a casca em risco, que num quase átimo-nada, quer-se ir trincando até se ver quebrada.

Há o tempo, há o vento, o sol, a chuva, o verão e a invernada. Há um pai e uma mãe que sofrem por saberem dos riscos que a cria no ninho gerada vai encontrar tão logo se veja pronta, vicejada – pois à luz do sol ou no segredo da madrugada perigos não faltarão ao rebentinho que craquela em bico agudo e constante a ovada. Mesmo a medo e receios, a vida – chocada – espera e luta por sua vez de também se ver realizada.

Gaviões e abutres não são meras ilusões. O mal espreita e roda, à roda, dos corações. Lições de terror, de sangue, de balas que voam errantes abalam as penas da mãe amorosa que doa e gera a vida. E a mãe sabe que o pior só está por vir – e vem! – de todos os lados e cercados. Gatunos famintos circularão os inocentes neófitos, mesmo quando esses estejam passarinhando colados ao ninho. Na sombra da tarde mais fagueira, uma pedra de estilingue, uma sacada de bodoque pode por fim ao sonho de uma gestação inteira.

Não faltam ainda as ameaças do pior dos predadores: os mau-atores que circulam pelo mundo como verdadeiros redentores. Falsos que caridosos, biltres que devotados, cantam e rezam de mãos juntas pela beleza da criação – enquanto projetam e atuam devorando espíritos, engolindo almas, cuspindo penas entaladas em suas gargantas de papa-ovos, de papa-ninhos. Bandidos contumazes empossados, segredam sua maldade por trás de sua pseudo-humanidade.

Mesmo assim, o casal de passarinhos segue seu roteiro por inteiro. Contra a força da opressão, a beleza do existir mansinho. Contra a desgraça da armas, o canto limpo, singelo e afinadinho. Contra a crueza dos homens-algozes, o bico e as garras em contestações violentas e atrozes. Porque mais forte do que os que fazem o mal é a arte dos que soltam as asas e voam, voam céleres que radiantes – empenados, empenhados e constantes sob o céu azulado que guarda a tudo, por fim, em seu imenso e celeste globo de cetim.

Por isso, o pai-passarinho espera em círculos agitados sobre o ninho. Pia, voa e ecoa a esperança de ver em breve o divino gorjeio da criança. Depois, descansa um pouco sobre os galhos de uma certeza feita apenas de bem-querer e devoção. Sem perder de vista, no entanto, o universo-agreste que o cerceia, sem perder também dos olhos o ovo estremecido e quente sob as asas da mãe-eterna-mãe – esteio e berço seguro do filhote que, em poucas horas, iluminará seus olhos com o mundo doce e afável do qual só desfrutam os que são pequenininhos – o pai descansa, sério e pensativo.

Se a esperança é (como disse um vento certa vez, vindo do Sul) essa louca que mora no último mês do ano, no décimo segundo andar do prédio do existir em ciclos anuais e constantes, é fato que em breve o bico mais bonitinho que jamais se viu romperá o ovo e um novo ciclo novo se verá sobre a terra de novo.

E, no ninho, o universo cândido (e Portinari) dos passarinhos se nos dará em presente-Uno, e exemploso, um luminoso e arteiro ciclo novo.

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Que em 2021 – ante a opressão e a injustiça, ante o preconceito e a maldade, ante a força da exceção e as ameaças à democracia e aos direitos dos menos favorecidos – prevaleça o canto, a doçura e arte dos passarinhos.

PS: esta coluna e este colunista entram em férias (talvez merecidas) e retornam (ainda há esperanças) em fevereiro. Abraço cordial e fraterno. E um ano repleto de passarinhos a todos.

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Alê Bragion, editor do site Diário do Engenho.

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