Alê Bragion
“Ó, sino de minha aldeia, dolente na tarde calma, cada badalada tua soa dentro de minh’alma” – cantou como num Natal um Pessoa em pessoa, ausente talvez um pouco da razão de uma poesia mormente enraizada no lirismo dos heterônimos que gritam, tangem e ardem em falso coração de comboio de corda. Eu, de mim, não tenho sinos em minha aldeia, nem mesmo aldeia ou Pessoa – e as badaladas que não ouço apenas batem na teia trançada que invento e recrio em minha almaldeia feita de letras cansadas. É Natal, afinal, queiramos ou não. É Natal, por fim, e os sinos aqui ausentes batem ainda dolentes – mas só dentro de mim.
Elo do espírito ao material, o Cristo na manjedoura, o menino Jesus de Caeiro, não nasceu em um castelo – mas entre um boi e um carneiro. E se esse menino nascido é para o mundo, mesmo, esse elo, não nasceu ele entre armas, mas – como cantou Vinícius – entre a foice e o martelo. “A noite o fez negro, fogo o avermelhou, a aurora nascente todo o amarelou. O dia o fez branco, branco como a luz, à falta de um nome chamou-se Jesus. Jesus pequenino, Filho natural. Ergue-te, menino. É triste o Natal”. É triste o Natal, caro Vinícius – poeta, poetinha camarada. O Cristo de hoje em dia, das igrejas de cada esquina, é uma criação moralista sem beleza, sem divindade, sem luz e natividade. Poeta, acreditai, o Natal por aqui é triste de verdade.
Nos lares fechados a medo, nas moradas mais simples e singelas, surgem, porém, um segredo que guia os viventes ao ano e os anima contra o mal: entre os que de tudo menos têm, aí é sempre Natal. Natal sem neve, sem árvores brancas, sem luzes coloridas, é no Natal dos mais simples que deve morar a esperança que dá lume à vida. Por isso, emprestando a eles alguns versos – agora não mais de Vinícius, mas outra vez de Pessoa – digamos por suas vozes (dando vozes a tantos e tantos oprimidos): “como é branca e de graça a paisagem que nem sei, vista de trás da vidraça do lar que nunca terei”. Então, e se há de haver no Natal uma certeza, é que Deus está na pobreza e na alma dos esquecidos.
Ó, sino de minha aldeia varonil, de meu engenho e colônia chamado Brasil, como bate lento o seu soar, “tão como triste da vida, que já a primeira pancada tem o som de repetida”. E como aqui se repetem os anos, com aqui se repetem as sinas. Mas é Natal e há mistério – com ou sem poesia – repleto de nostalgia. Por isso, cantemos. Cantemos lembrando de outros tempos muito melhores. Cantemos esperando outros mundos, cantemos querendo novos momentos e um novo país. É Natal e há mistério – esperemos! E nunca deixemos de cantar, porque o mal odeia o Natal e a poesia.
É Natal, poxa, exultemos! E, por fim, voltemos a Vinícius – pois: “não há muito o que dizer: uma canção sobre um berço, um verso, talvez de amor, uma prece por quem se vai. Mas que essa hora não esqueça, e por ela os nossos corações, se deixem, graves e simples. Pois para isso fomos feitos: para a esperança no milagre, para a participação da poesia. Para ver a face da morte. De repente nunca mais esperaremos… Hoje a noite é jovem; da morte, apenas Nascemos, imensamente.”
(Se) Hoje a noite é bela, dela ainda nasceremos.
Feliz Natal.
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Alê Bragion, professor, editor do Diário do Engenho