Recordo que certa vez, numa longa, agradável e para mim muito instrutiva tertúlia com meu saudoso amigo Prof. Edivaldo Boaventura (fundador e ex-reitor da Universidade do Estado da Bahia, diretor do jornal “A Tarde”, criador do Parque Estadual de Canudos e ex-secretário da Educação do seu Estado), perguntei-lhe como ele traduziria, para o português, a palavra Paideia. Como bom ex-aluno da Companhia de Jesus, ele, de acordo com o velho costume dos jesuítas, respondeu à minha pergunta com outra pergunta: “- Traduzir, para quê?”
De fato, esse é um conceito quase intraduzível. Podemos conseguir, em outras línguas, palavras que nos permitam nos aproximarmos do conceito de paideia, mas não encontraremos nenhuma palavra que nos traduza, singelamente, todo o rico e abrangente significado da paideia grega.
A ideia fundamental da paideia era a educação, mas uma educação entendida num sentido muito amplo e, paradoxalmente, muito específico. Paideia vem de uma palavra (PAIDOS, ou PEDOS) que significa menino, criança. Paideia era, pois, uma educação de ou para meninos.
A noção de paideia era profundamente ligada à de aretés, que significa virtude. A paideia era, pois, um auto-aperfeiçoamento, pela via do autoconhecimento. O autoconhecimento era o caminho adequado para a aquisição das virtudes. Daí o velho conselho do “Conhece-te a ti mesmo”, que nos chegou pelos romanos, em latim, como NOSCE TEIPSUM ou SCITO TEIPSUM.
Era, porém, um “conhece-te a ti mesmo” enquanto grego, enquanto membro do grupo humano muito amplo dos partícipes (exprimamo-nos em termos modernos) do “greekwayoflife”.
Pois bem, o que era esse conjunto de modos de ser, de pensar e de sentir que caracterizava os gregos, que fazia com que os habitantes da Hélade, provenientes de pelo menos quatro origens diversas, se considerassem um todo psico-sociológico?
Aqui entra o elemento de Homero, cujas duas epopeias condensaram todos os valores e todos os modelos humanos que inspiraram a cultura grega antiga e, mais do que isso, haveriamdepois de fixar, conjugadamente com a tradição do pensamento judaico-cristão, as bases do pensamento de todos os tempos, senão da Humanidade inteira, pelo menos do mundo ocidental.
Nos primeiros tempos, os gregos antigos não tinham escrita, de modo que as duas epopeias homéricas eram transmitidas de geração em geração por via oral, de memória, de cor. Com o surgimento e o desenvolvimento da escrita, a educação grega se fazia sobre os livros homéricos. A paideia tinha como objetivo preparar os jovens para ler e escrever os textos homéricos, e, por esse meio, ler e entender a origem e a especificidade do povo grego. Em outras palavras, não só para se autoconhecerem, mas para se autoconhecerem enquanto gregos.
Essa é uma ideia muito importante para se compreender a especificidade da paideia. Era em ordem à inserção dos indivíduos no universo cultural e psicológico da sociedade grega que se desenvolviam os indivíduos. O aperfeiçoamento individual se ordenava, pois, ao interesse coletivo, para o bem comum, para o interesse e o serviço daquilo que, muito imperfeitamente, se poderia designar como Estado. E, dadas as variações das várias póleis gregas, o modo de entender esse serviço também variava. No caso de Esparta, por exemplo, a vocação militar era muito assinalada e envolvia ambos os sexos. Em Atenas, já era bem diferente, e assim por diante.
Outra ideia muito presente no universo mental grego é que, se o conhecimento é o caminho para o aperfeiçoamento e a vida, o esquecimento é o caminho para a morte.
Verdade, em grego, era a-leteia, ou seja, não esquecer. Na mitologia grega, o rio Lethe, ou Estiges, era atravessado pelos mortos para chegar ao Hades, ou Tártaro, o reino da morte, do esquecimento, imperfeitamente traduzido por inferno. Os mortos, ao atravessarem o rio Lethe na famosa barca de Caronte, bebiam das águas do rio Lethes e esqueciam de seu passado, de sua vida, e tinham, assim, uma segunda morte. Se a primeira morte libertava seu espírito, ou sua alma, dos laços da carne, a segunda, mais radical e irremediável, o libertava de sua memória, de seu passado. Daí serem os mortos chamados, por Homero, de cabeças vazias.
Um ponto muito importante a destacar: na concepção grega clássica, os jovens deviam ser aperfeiçoados, sim, mas não eram todos os jovens, apenas alguns que deviam sê-lo.
Mesmo na concepção formalmente igualitária da República de Platão, a ideia da desigualdade de condições dos homens estava profundamente enraizada. Assim, quando se falava em paideia para educar e aperfeiçoar, entendia-se que isso era para os aristocratas. E a palavra aristocrata tem sua raiz exatamente em aretés. Aristocratas eram os melhores, os mais virtuosos, aqueles que eram gregos a um título muito especial. Eram, por assim dizer, os mais gregos de entre os gregos.
Essa ideia, de que a função primordial da educação era destacar e preparar os melhores dentre os melhores, em linhas gerais informou (no sentido filosófico, isto é, de dar forma a uma matéria informe preexistente) toda a educação em todos os tempos. Somente muito recentemente o critério da educação passou a ser estritamente igualitário.
No Brasil, concretamente, foi só com os governos do regime militar, que aplicaram a malfadada Lei de Diretrizes e Bases já esboçada no regime João Goulart, que se alterou profundamente o sistema consagrado. A partir daí, no altar da Igualdade sacrificou-se a Qualidade. Multiplicaram-se as escolas, as faculdades, os doutores, os títulos, os “depromados” e chegamos ao momento atual. Até os anos 60 do século passado, em linhas gerais, as escolas públicas eram poucas, mas ministravam um ensino de bom nível. Desde a LDB, as escolas se multiplicaram, as faculdades, idem, mas o ensino, para combater o “elitismo”, foi cada vez mais sendo massificado e, como decorrência, cada vez mais se foi abrindo um fosso intransponível entre o ensino privado (sucedâneo imperfeito do velho ensino aristocrático de outrora) e o ensino público – sucateado, humilhado, descaracterizado. Para implantar a igualdade, acentuou-se a mais cruel e intransponível das barreiras, a das castas culturais…
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ArmandoAlexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.