José Renato Nalini
O Brasil sentiu mais do que os outros países o impacto doloroso da pandemia. Já vinha se arrastando numa crise ética, depois moral e em seguida política. A desaguar na economia. Coroada pela tragédia sanitária.
O resultado, além das dezenas de milhares de mortes, ainda em curso, foi o escancaramento da miséria. Milhões de invisíveis, outros milhões de excluídos, milhões de desempregados e subempregados. Uma policrise que levará muito tempo a ser debelada.
Isso acarreta uma responsabilidade potencializada para os prefeitos que vão ser eleitos no próximo dia 15 de novembro. Encontrarão uma pobreza multidimensional. Desde a miséria mais abjeta, aos pobres que se converteram em paupérrimos, em boa parte do que restara da classe média, reduzida à pobreza.
Um prefeito precisa administrar a situação calamitosa de maneira a otimizar os recursos finitos, para necessidades infinitas.
Ninguém consegue acreditar que um chefe de Executivo, por mais capaz seja ele, consiga responder a todas as expectativas. Estas são plúrimas e heterogêneas. Quem já participou da administração pública sabe que o poder desgasta. Inviável atender a todos os pleitos. Os sequiosos de respostas prontas e favoráveis serão os primeiros a abandonar o barco. Há uma linha tênue entre os que são áulicos num dia e ferrenhos críticos no outro.
Com orçamentos praticamente fictícios, pois baseados numa arrecadação que pode não se concretizar, os prefeitos precisarão ser estrategistas de otimização de recursos.
Há condições de alavancar o caixa debilitado. Uma delas é promover a regularização fundiária. Política pública nem sempre levada a sério, mas que potencializa o ritmo do aperfeiçoamento democrático de uma sociedade. Pois não é apenas uma questão jurídico-formal. É uma atuação que reclama participação de urbanistas, ambientalistas, assistentes sociais, antropólogos e psicólogos. Guarda pertinência com o planejamento da cidade, ocupação do solo e vocação regional.
Quando se regulariza uma área, injeta-se um grau de cidadania até então inexistente no precário ocupante de uma gleba. Ele passa a ter um status civitatis e é impulsionado para promover edificações, ampliações, reformas que valorizam a sua propriedade. E o município ganha um IPTU mais tangível e baseado em critérios racionais.
Combater a sonegação e manter um sistema de accountability democrático, mostrando à população como se aplicam as verbas, legitima qualquer mandato. Divulgar à sociedade o orçamento, sua realização mês a mês, permitir o acompanhamento dos investimentos realizados e propiciar fiscalização dos serviços e obras públicas é algo que dignifica o administrador.
Hoje há um sistema confiável de tecnologias da comunicação e informação que precisa ser utilizado para finalidades dignas. As redes que difundem maledicência e inverdades podem se destinar à divulgação da verdade. E propiciar a todos os cidadãos uma participação mais efetiva na gestão da coisa pública.
Simultaneamente, envolver todas as lideranças em projetos comunitários apartidários e voltados à redução da desigualdade não é impossível. Os brasileiros acordaram para a solidariedade ao verificarem que seus irmãos estavam morrendo por falta de assistência, falta de respiradouros, falta de UTI, falta de pessoal qualificado na medicina e enfermagem. Esse impulso de compaixão tem de ser bem tratado pela autoridade municipal que tem a missão de ser indutora de boas práticas.
A presença do Prefeito nas escolas, nos hospitais, centros de saúde, sedes de comunidades de bairro e de representações classistas, sindicais, religiosas, é um fator de contaminação entusiástica.
Espera-se que os prefeitos e prefeitas eleitos em 2020 levem consigo a experiência salutar de terem vivenciado uma pandemia que exibiu, despudoradamente, as nossas deficiências e nossas misérias. Reduzir as desigualdades, extirpar a miséria, não é utopia. É urgente necessidade. Chegou a hora de um heroísmo ético a ser protagonizado pela chefia do Executivo dos municípios brasileiros.
O mundo pode ser melhor, a partir de uma cidade melhor. É o que todos esperam.
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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo