Vidas negras, na minha vida

Rubens Leme

Às vésperas da comemoração do Dia da Consciência Negra (20/11), sento-me para escrever essa crônica, com um receio muito grande de manifestar um antirracismo demagógico ou mesmo hipócrita, afinal consta que meus antepassados paternos tinham escravos em sua fazenda. Na verdade, por omissão ou mesmo comportamento, temos uma dívida histórica com a raça negra.

Feitas essas ressalvas, e sem qualquer rigor histórico ou cronológico — deixo essa  parte para o grande historiador piracicabano, o professor Noedi Monteiro —  passo a relatar esses fragmentos do meu relacionamento com os(as) afro descendentes ao longo da minha vida.

Meu pai, filho de família tradicional piracicabana, ao casar com minha mãe, uma operária da fábrica Boyes, acabou vindo morar no setor mais popular do Bairro Alto, nas imediações do antigo Bosque Barão de Serra Negra, hoje o nosso Estádio Municipal que leva o mesmo nome. Nessa região do bairro tínhamos uma grande comunidade negra, que a especulação imobiliária cuidou de expulsar para a periferia mais distante. Nela já moravam meus avós maternos, cujos filhos (as) foram todos criados na querida Cidade Alta Foi nesse bairro, onde vivo até hoje, que tive o privilégio de conviver com dezenas de negros (as) que marcaram minha infância, juventude e parte da idade adulta. Nos dias atuais, dá para contarmos nos dedos os negros que ainda vivem por aqui, é a lógica capitalista do salve-se quem puder, que transforma seres humanos em números, privando-os de uma convivência democrática e multirracial, geradora da miséria e  da violência urbana.

Que saudades de João Pinga, Gerson e seu irmão Jair Garrafinha, Misael de Oliveira, o nosso Roberto Carlos, “seo” Chiquitinho. Dona Joana, que casou com meu primo Florival, seus filhos Zé Maria, Sorocaba, Carlão da prefeitura, Cida, Maria Alice, Tavinho, o travesti Negão. Professor Osvaldinho, a educação em pessoa, Ditinho Chumbão nosso parceiro do infantil Paulistano, Marcelino essa figura folclórica inesquecível. Janga, Simão, Zé Preto, Nenê Nó,Cidão, Lemão(falecido dias atrás), Xixo e Clodo, duas figuras históricas da cultura bairro altense. Irmãos Bonga e Daniel, grandes lideranças negras, um no futebol outro no carnaval, aos quais tive a honra de articular a singela homenagem, de colocar seus nomes na emblemática praça localizada na confluência das ruas Silva Jardim e Moraes Barros. Não poderia deixar de elencar três lideranças negras, com as quais tive o prazer de conviver mais recentemente no aconchegante recanto cultural do Bar do Claudio, também aqui no Bairro Alto, o já saudoso Rocão do Correio, O jornalista Niva Miguel e o mestre da capoeira Adilson, assim como do nosso simpático Hugo. Na verdade, poderia citar mais algumas dezenas deles (as), mas espero que os (as) aqui lembrados possam dar a dimensão da importância das vidas negras em minha vida.

O futebol e o carnaval sempre foram dois componentes da nossa cultura, que permitiram uma maior integração entre negros e brancos em nosso país, e foi através deles que pude dar a minha modesta contribuição no sentido de estreitar os laços entre as classes sociais e as diversas etnias que formam a nossa nação. Através do nosso querido E.C. Paulistano, de memoráveis lembranças, onde participei como jogador e “tomador de conta “ (assim que a gente falava) principalmente da categoria infantil, na Escola de Samba Unidos da Cidade Alta, onde fui um dos responsáveis pela sua legalização junto aos órgãos responsáveis, participando da sua primeira diretoria juridicamente constituída e na criação do Movimento Cultural Sapucaia (Banda, Iluminação, Festas Juninas…), desenvolvi minha militância, no sentido de harmonizar as pessoas independente de sua cor, credo ou classe social, valeu a pena.

Não poderia deixar de agradecer aos amores negros da minha vida. Cidinha, meu primeiro amor (só ela não sabia…), Lourdes, minha “Juliana Paes” de lindos olhos amendoados (in memorian) e a Deusa de Ébano de lábios carnudos e corpo escultural, cujo nome permitam-me não citar.

Prá finalizar, quero dizer que esse texto mais que uma homenagem é um agradecimento a todas as vidas negras que passaram pela minha vida, mesmo porque mais que as palavras o que valem são as atitudes, um axé a todos e todas.
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Rubens Santana de Arruda Leme (e-mail: [email protected])

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