Alê Bragion
A mão que afaga é a mesma que apedreja, escreveu Augusto dos Anjos – talvez num acesso de lucidez extrema sobre a dissimulação e a inconstância da moral que flui e reflui entre humanos que de humanos pouco têm. Drummond, o poeta das sete faces, guardou para as mãos uma face fraterna e convidou a humanidade a se unir no instante presente e a seguir junta, de mãos dadas: “o presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” Curioso, o contemplativo menino Jesus de Alberto Caeiro fez das mãos instrumento de observação e contato como o divino que é natural, mostrando ao mundo como até as pedras são engraçadas quando a gente as tem nas mãos.
Instrumentos de contemplação. Agentes da bondade e da maldade. Elos de uma cadeia de união que funde o amor ao presente em resistência, as mãos são as ferramentas com as quais se constrói o mundo da matéria que vibra e pulsa no coração e na imaginação. Para o artista, mais ainda, são as mãos as responsáveis pelo tráfego no qual se veicula a ideia e se chega ao ponto final da criação: a materialidade da obra. Seja ela sonora, verbal, pictórica, gestual ou cênica, toda arte nasce por meio – ou, melhor, pelo intermédio – das mãos. Mesmo que não se tenha mãos físicas, a criação da obra humana se compõe também a partir de mãos flutuantes, etéreas e imaginárias – ora convertidas em pés, ora convertidas num lápis na boca, ora metamorfoseadas num aparelho elétrico ou eletrônico. E, sob esse prisma, toda arte é, então, manual.
Manual é também assim a arte de Rocco Caputo – e por meio de suas mãos é que sua obra se compõe como uma viagem transcendente entre o real e o imaginário, entre o visto e o desenhado, entre o desejado no mais íntimo do desejo secreto e o riscado a dedo no papel do explícito-eu. Repletas de cores, paleta encarnada de tintas entre dedos e palmas coloridas, as mãos de Rocco Caputo, em 2019, o levaram para Itália. Lá, suas mãos passaram parte do ano em contato com mãos de outros tempos, de outras telas, de outras tintas. Tocando a tristeza, o amor e a saudade com ambas as mãos, mas tateando a pátria brasileira à distância – sem querer tocá-la por puro pudor e decepção –, as mãos de Rocco, todavia, inevitavelmente o trouxerem de volta para onde não faltam mãos a clamar por uma arte, como a dele, capaz de registrar o momento nacional (de incredulidade tátil em alto relevo).
No interior do Rio de Janeiro desde a volta ao Brasil, as mãos de Rocco não pararam de pensar e poetizar em giz pastel a essência do existir. Espelho das mãos que constroem o mundo, as mãos do pintor deram vida a tantas outras mãos também em espelho. Mão a mão, sua série “Mãos” é assim uma ciranda de mãos famosas e anônimas que se ligam, quadro a quadro, no contorno em registro de um momento em que seguir de mãos dadas – como pediu Drummond – é uma das formas mais elementares de sobrevivência. Do retrato das mãos do Papa Francisco às mãos em balé numa espécie de O Lago dos Cisnes, passando por redes feitas apenas de mãos em suas formas – conformes e disformes – a série “Mãos” é, por fim, uma mão na roda para o olhar de quem procura se desvencilhar do comum e do repetitivo.
Convite para seguirmos juntos, as mãos de Rocco Caputo – e os desenhos dessa série nos quais apenas as mãos são o figurativo em ação – nos prendem de forma boa, nos entrelaçam a ele e ao outro ao nosso lado – nos lembrando sempre que, em tempos de mãos opressoras do estado, as mãos do amor não têm o direito de desfalecer.
Por isso, neste maluco de 2020 – ainda mais – ninguém pode soltar a mão de ninguém.
Vale a visita ao site do pintor: www.atelieroccocaputo.com
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Alê Bragion, sobrevivente de 2020 (ao menos até o momento!) e editor do portal piracicabano Diário do Engenho