Camilo Irineu Quartarollo
Dos seres minúsculos o Eterno lá do alto pinçou um, Scrooge. Por assim, saía o homem nas noites a dar de comer aos famintos, aos nus de frio a roupa e, por fim, levava de sua casa um caldeirão quente de sopa e pães aos esquecidos dos centros da metrópole, entranhados no subterrâneo das encostas do rio próximo às indústrias de tecidos da primeira revolução dos teares em série, no parto da sociedade industrial.
Delegava aos chefes de fábrica as inúmeras crianças órfãs, que supliciavam num trabalho por catorze horas numa fábrica mal iluminada e suja e sujeitas a acidentes, quando era só trocar o carretel e a máquina não parava. Scroge se acostumou com a sua glória de benfeitor e a Câmara de sua cidade lhe fez uma bela estátua no jardim, imortalizando-o com o que posso assombrar o próprio Charles Dickens.
Convencera-se de que Deus realmente assim dissera e dormia sempre esperando rever o sonho, mas Deus não se repetia no barulho do tear, que não parava nem por um dedo cortado.
Continuava a benemérito desafiando os sonhos e o Jack, que rasgava o véu das noites e matava em série, enquanto os teares não paravam. Liam-se nas primeiras horas nos jornais, ao lado de belos contos e artigos de Dickens, que só falava de meninos perdidos, de mendigos e príncipes.
Uma noite Scrooge cruzava as ruas da miséria alheia e cumpria com seu papel social de benemerência, ia e vinha com pães e sopa que distribuía, quando viu outro com o mesmo ofício. Olhou e quase não acreditou. Quem será esse? Quando a noite já embocava pela madrugada e as carroças vazias faziam sombras nos cavalos Scrooge foi ter com o benfeitor intrometido.
Parou, suando e com medo, pois sabia também que Deus, além de vir em sonhos, vem em mortes inoportunas. Ali poderia estar o ceifeiro pelas mãos do Jack. Assustado, o velho dirigiu-se à figura sombria perguntando se sonhara com Deus. Sinistramente o homem disse um não lacônico. Percebeu o velho que o estranho portava além dos pães uma faca na cintura e apelou dizendo “já sei, o senhor é o assassino em série”. Enquanto a sombra da catedral cobria com sombra até embaixo a figura grotesca disse “e o senhor também”. “Mas eu sonhei com Deus, minha estátua está lá na praça, e o senhor?” – redarguiu. Então o homem sacou da lâmina, cortou capim ao animal e se foi como num sonho. As máquinas de tear não mais pararam nas tramas e urdiduras do tecido social para revestir a História, enquanto se banha a nua verdade.
Nota: Para os estudiosos da psicanálise, o tratamento do complexo que retém a energia psíquica e foco ilusório do indivíduo trabalha com o tema do sonho que pode vir em sonhos repetitivos, para que o sonhador consiga quebrar o ciclo e zona de conforto e segurança, passando a integrar em sua personalidade esses contextos não mais sombrios.
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros