Como se originaram as sociedades e as formas de governo

Historicamente, as sociedades têm sua origem na família. A sociedade familiar, ou doméstica (de domus, casa) é a primeira das sociedades. Repugna ao homem viver isolado, pois tem instinto de sociabilidade e necessita de seus semelhantes. E também é contrário a sua natureza viver solto e perdido numa multidão informe, à maneira de grão de areia num deserto. O homem situa-se primeiramente numa família, e é a família (e não o indivíduo) que constitui a célula da sociedade maior.

A família – nos tempos primitivos como em todos os tempos – não é apenas um conjunto de indivíduos portadores do mesmo sangue, existente num determinado momento. Organismo vivo, a família deve ser vista projetada no tempo. Em outros termos, os membros vivos de uma família, num determinado momento, são o elo de ligação entre os seus ancestrais e os seus futuros descendentes. A noção de tradição está, assim, intimamente ligada à de família, qualquer que seja o nível social desta.

A partir da sociedade doméstica e em virtude da natural ampliação e desdobramento desta, constituíram-se sociedades maiores, ainda sem as proporções de um Estado ou comunidade política propriamente dita, mas já tendo algumas características desta. São as chamadas tribos.Designamos genericamente por tribo o estágio intermediário entre a família e a sociedade política, sem entrar na especificação das variadas formas que, nos diversos povos, se verificaram, e às quais corresponderam designações diferentes: clã, gens, fratria, cúria etc.

Nas tribos, a partir de um ancestral comum, o tronco principal ia deitando galhos e ramos, multiplicando-se os descendentes do primeiro. Aos poucos, agregavam-se pessoas de outras procedências e pelo casamento, ou por vínculos de servidão, passavam a fazer parte daquela tribo. À medida que esta aumentava, o elemento consanguinidade, antes exclusivo, ia-se tornando menos marcante, até diluir-se de todo. A autoridade na tribo, enquanto era vivo o fundador, por direito natural cabia ao patriarca (etimologicamente, pai que governa). Com a morte deste, um filho, geralmente o primogênito, assumia o comando, e assim por diante. O patriarca corresponde ao estágio intermediário entre o pai e o rei: do pai saiu o patriarca e do patriarca o rei.

Na Sagrada Escritura fica muito clara essa passagem do patriarcado para a soberania.Quando Abrão, com 318 de seus servos, combateu os reis que haviam pilhado as cidades de Sodoma e Gomorra, havia nele algo de um patriarca que já começava a agir como rei: ele era o chefe militar da sua grei, ele fez alianças com outros chefes – era a diplomacia que tinha início -, agiu como vencedor e dispôs soberanamente dos bens conquistados aos adversários. Mais tarde, o mesmo Abrão, já com seu nome mudado por Deus para Abraão, contraiu com Abimelec uma aliança que constituía um verdadeiro tratado entre soberanos, fixando bases jurídicas para o relacionamento dos dois reinos – era o Direito das Gentes que começava a se firmar (Gen., caps. 14-21).De Abraão a autoridade passou para seu filho Isaac, que sucedeu naturalmente ao pai. Já na sucessão seguinte, quando Isaac moribundo abençoou a seu filho Jacó, havia na bênção, claramente, uma transmissão de autoridade soberana: “Deus te dê do orvalho do céu e da fertilidade da terra, e abundância de trigo e de vinho. Os povos te sirvam e as tribos te reverenciem. Sê o senhor de teus irmãos, e que os filhos de tua mãe se inclinem diante de ti; aquele que te amaldiçoar seja ele próprio maldito, e aquele que te abençoar seja cumulado de bênçãos”(Gen., 27,28-29) Mais clara ainda fica a passagem do patriarcado para a soberania, entre a descendência de Jacó, no Egito (Gen., caps. 28-50

Foi pelo natural crescimento e desdobramento das tribos que se originaram as sociedades políticas maiores. Quando os laços de consanguinidade, ou pelo menos a noção clara da existência desses laços, se esvaem, o relacionamento entre os chefes e os subordinados já não se faz à maneira familiar de origem – em que o pai tudo pode e tudo manda e em que também o que é do pai pertence aos filhos – mas começa a se constituir organicamente uma vinculação jurídica nova, num equilíbrio de direitos e deveres, em que o soberano cuida do bem comum daquela sociedade, protege-a contra os adversários, e recebe dela a obediência, o serviço e as honras que lhe competem. Essa é a evolução natural da família para as monarquias primitivas. O governo monárquico nasceu, pois, com a própria natureza, diretamente derivado da primeira das autoridades, que é a paterna, na primeira das sociedades, que é a familiar.

Assim se formaram geralmente as sociedades. Mas não era o único modo. As comunidades primitivas não viviam inteiramente isoladas. Relacionavam-se umas com as outras, o que possibilitava a interpenetração delas. Por vezes, acontecia de, por razões de ordem diversa, se unirem ou se federarem várias famílias ou tribos numa comunidade política maior. Os chefes dessas parcelas conservavam sua autoridade no que dizia respeito às respectivas greis, e decidiam entre si, em bases paritárias, o que dizia respeito ao interesse comum. Eram as aristocracias que se formavam, por vezes sob a forma de conselho de anciãos. Ao cabo de algum tempo, podia acontecer de esses chefes escolherem um deles como seu principal: constituía-se assim uma monarquia, temperada de elementos aristocráticos. Ou podiam estabilizar-se, à maneira de uma república aristocrática. As sociedades políticas eram, originariamente, monárquicas ou aristocráticas. Só mais tarde apareceram as primeiras democracias.

Em sociedades tornadas muito numerosas, era natural que o desejo de expansão levasse alguns indivíduos a procurarem novas terras, a constituírem colônias em áreas que desbravavam. Tudo isso de acordo com o preceito divino “Crescei e multiplicai-vos, enchei toda a terra” (Gen., 1,28).Nessas sociedades novas, os colonizadores, por assim dizer emancipados dos respectivos vínculos patriarcais ou políticos, viam-se em pé de igualdade: corriam os mesmos riscos, faziam o mesmo trabalho, gozavam das mesmas condições paraenriquecer e progredir. Sendo ainda pouco numerosos, era normal que se reunissem todos para decidirem em comum o que interessava ao bem daquela comunidade. Era uma democracia que, naturalmente, constituíam.

Essas democracias novas, com o crescimento numérico e com a normal diversificação das condições de seus membros, tendiam a evoluir para aristocracias ou monarquias. Nos tempos primitivos, as democracias propriamente ditas eram geralmente estágios intermediários na evolução dos povos. Quando tendiam a se prolongar indefinidamente, o mais das vezes já não eram democracias puras, eram regimes formalmente democráticos, porém na realidade, aristocráticos ou oligárquicos.

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ArmandoAlexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

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