O trabalho do futuro ameaçado

Almir Pazzianotto Pinto

 

Sabemos que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não poderia prever modalidades de trabalho que surgiriam no final do século 20. O exemplo mais recente é o teletrabalho, incrementado pela pandemia da Covid-19.        O fácil acesso ao microcomputador, à internet, ao celular, alargou os caminhos para o trabalho à distância, com o uso de equipamentos eletrônicos. O predomínio sempre foi do trabalho presencial.

Milhões de mulheres e homens ainda se prendem à massacrante rotina: acordam, tomam o café da manhã e dirigem-se ao emprego. Fazem uso de oneroso transporte individual ou coletivo. Quatro vezes por dia marcam o ponto: para entrar em serviço, para sair e voltar do almoço e no final da jornada. Durante oito horas permanecem sob vigilância, em regime de subordinação. Dependendo da personalidade do chefe, até a ida ao lavatório é fiscalizada. As preocupações com produtividade e custos exigem do empregador que administre as horas de serviço.

Neste aspecto, a CLT é minuciosa. Disciplina de forma detalhada a duração do trabalho e os intervalos destinados ao repouso. Gerações de empregados adaptaram-se de maneira servil às exigências da legislação restritiva da liberdade pessoal. O rigor da lei pode ser avaliado pelo conteúdo do parágrafo 1º do art. 58: “Não serão descontadas nem computadas como jornada extraordinária as variações de horário no registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos”. O registro de presença deve ser preciso às partes contratantes. O exagero da legislação cerebrina se manifesta no parágrafo 1º do art. 73, cujo texto diz: “A hora de trabalho noturno será computada como de 52 (cinquenta e dois) minutos e 30 (trinta) segundos”.

Em 1943, quando foi a CLT elaborada, o ponto poderia ser manual ou mecânico. O “livro de ponto”, anotado à mão, era comum em repartições públicas e pequenos negócios. Médias e grandes empresas se utilizavam de cartão confeccionado em papelão barato, no formato exigido pelo Ministério do Trabalho. Acabou desacreditado com o passar dos anos. Estabelecimentos com centenas de trabalhadores necessitavam de mais de uma “chapeira”, placa metálica onde ficavam depositados cartões individuais.

Conflitos trabalhistas, tendo como fulcro a cobrança de horas suplementares, continuam a ser frequentes. Não me recordo de ter visto um único processo no qual o pedido de horas extras tenha sido improcedente. Basta uma testemunha, em geral colega de trabalho, para anular a prova produzida por cartões anexados aos autos. O moderno REP – Registro Eletrônico do Ponto não resolveu o problema, como sabem os advogados e juízes trabalhistas.

O teletrabalho poderá reduzir pendências dessa natureza, pela flexibilização imprimida ao horário de trabalho. Em casa o empregado iniciará a jornada sem se preocupar com registro manual, mecânico ou eletrônico. A subordinação se esgarça. Gozará de liberdade para escolher o momento de acordar, tomar o café da manhã, almoçar e encerrar a jornada. Poderá ler ou ouvir as notícias do dia. Haverá mais espaço para a família, a educação e o lazer. Trabalhará com o microcomputador cujo modelou escolheu e adquiriu. Cumprirá as obrigações diárias sem atropelos e sem temer o olhar do chefe.

Não necessitará de automóvel, motocicleta, ônibus ou metrô, com economia nas despesas de transporte. Dispensará a lanchonete ou restaurante. Terá liberdade para trabalhar em silencio ou ouvindo emissora de sua predileção. Sua preocupação será manter ou melhorar a produtividade. Interrupções para o cafezinho, refeições ou lanches deixarão de ser controladas. O empregador economizará espaço, energia elétrica, água, material de escritório e de limpeza. É impossível negar que as vantagens serão bilaterais.

Preocupa-me saber que o governo deseja regulamentar o teletrabalho. O argumento é o de sempre: defesa dos direitos do trabalhador. Sabemos o perigo que isso significa e convenhamos que se trata de medida exagerada. Se o trabalho à distância é executado por empregado, as garantias constitucionais e legais estarão asseguradas.

Se for autônomo, teremos um desocupado a menos.  Os cuidados devem ser com o desemprego, que o teletrabalho e o trabalho autônomo contribuem para atenuar. Burocracia mais atrapalha do que ajuda. É grande o perigo de termos legislação agressiva e cega à realidade. Deixemos o teletrabalho se consolidar, se expandir e demonstrar a que veio.

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Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho, presidente do Tribuna Superior do Trabalho (TST), autor de A Falsa República

 

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