Aconteceu o acontecido nos tempos nem assim tão idos das eleições de antanho. Tempos outros, de campanha em apertos de mãos e promessas ao pé do ouvido. As ruas se tomavam todas de polvorosa gente articulando conversas, distribuindo santinhos sem fé e alardeando a chegada dos candidatos – que se davam em desfile pela cidade, se misturavam ao povaréu nas calçadas e calcavam discursos em palanques feitos no em cima da hora de caixotes, caçambas de caminhonetes e degraus das entradas das lojas do centro. A turba eleitora – diferentona da de hoje – até que ouvia, até que parava num “ora-veja o que esse candidato está falando”. As eleições, no antes, eram assim: o povo queria saber o que pregavam os candidatos.
Um desses candidatos, no demais que os outros, era um chamado João (que, no mais, o nome todo do santo eu no conto não canto). João, no sempre-ser, era visto que revisto no propagandear-se de si mesmo pelas cercanias da cidade. De tamanho vistoso, zanzava e banzava pela urbe, juntando gente num gesticular de fala que só o dele. João. Nas esquinas onde parava, uns sempre paravam com ele – que de solidão o homem não morria. Articuloso nas respostas que dava aos eleitores de maior azedume, cortava na unha quem se arvorava em tentar desbancá-lo em língua mole, no bate-boca sem dentes de ofensas – que João, no dizer da lenda, não levava nenhuma para casa.
No rosário das lojas do comércio, que João desfiava em campanha, entrou ele fazendo festa no estabelecimento dos filhos do seu Alfredo – negócio fincado em raiz na tradição do bairro da Paulista. Cercado que cercando, João chegou chegando em festa de estardalhaços como era o que de costume fazia. Ao ver na ponta do balcão um eleitor-vítima em potencial (um vozinho na casa dos sem-idade), João não se desfez em rogado e gritou bem alto para ser ouvido de longe: “dá um abraço aqui, Vô! E leve o meu santinho”. O velho, no sincericídio honesto que a senilidade lhe permitia, só respondeu no seco: “não abraço corrupto!”. E o clima de “o caixão caiu no chão” na hora se deu. Mas João fez que nem sentiu.
Então viu, no fundo-bem-lá-no-fundo do estabelecimento e da vida, um homem de mãos na graxa que contava parafusos e tristezas. João – o homem, candidato – correu que correu num logo a cumprimentar com efusivo interesse e lógica ao homem engraxador: “dá aqui essas mãos, quero apertá-las, são mãos de trabalhador”. E lá foi João lambuzar as mãos nas mãos do homem – que se contraiu todo com dor, condoído, pela insanidade alheia. “Mas o doutor vai ficar com as mãos sujas de graxa…”. João não se importava em sujar as mãos.
João. Santo homem.
Ao sair da loja – não que tivesse feito de caso pensado, claro que não –, João não se conteve em contentamento: pegou velhinho rabugento e lhe deu um abraço desses de urso, com unhas e garras e facas nas costas, no baço, no fígado e rins. E enquanto o abraçava com gosto, num aperto de lhe tirar os pés do chão, cochichava algumas docilidades ao ouvido – depois dizendo em alta voz: “o vô tá bravo comigo, mas eu mesmo assim abraço o vô!”
Depois que o circo levantou as lonas e foi-se embora, o vestuto que ex-astuto velho linguarudo perdeu-se numa tristeza triste-que-triste sem fim – e de camisa suja num de repente feito de mãos desgraxadas nas suas costas. Sem saber se ia ou se vinha ou seguia o rumo da aurora, da Glória, da Avenida do Açúcar ou da Conceição, o velho deixou o olhar caído no chão, vexado do que lhe tinha sido por João sussurrado. Depois, se aprumou. Deu uma respirada. Bateu as mãos na camisa machada para ver se conseguiu limpar o que não se limpa nem com água quente. Então, viu ainda que os de dentro da loja, curiós curiosos, lhes sabiavam empoleirados, querendo saber o que havia sido dito em discreto secreto segredo por João.
Cambaio, quase que quase-mudo, o velho tomou coragem em suspiro e confessou fundo – em reto a, e, i, o, u: “o filho da mãe, ainda, me mandou é tomar no Sul…”
Sim. Eleições nos tempos dos Joões eram, mesmo, coisa bem mais interessante.