Amargo

Camilo Irineu Quartarollo

 

Um livro de bom aspecto, de belo visual, apetitoso, mas ao comer, conforme o anjo lhe mandara, sentirá o amargo nas entranhas – assim o autor do Apocalipse relata.

Afora os quatro evangelhos sinópticos e aceitos no cânone há os chamados apócrifos, sem a autoridade e coerência daqueles, portanto sem credibilidade maior, pois são concepções pseudo religiosas, talvez mais ao psicologismo e autoafirmações de alguns grupos dissidentes que a narrativa própria do evento primeiro e chamado evangelho. Haja vista que a perseguição dava azo a que o autor ou grupo se escondesse e narrasse coisas mais herméticas, no entanto, os evangelhos mesmo e outros livros bíblicos e escritores antigos não fazem questão de “direitos autorais”, e os estudiosos de hoje porfiam em saber quem realmente os escreveu. Entretanto sabem, estes quatro são pertinentes, e guardam coesão entre si.

José Saramago foi dotado de um dom divino na literatura, um Nobel, e um dos seus romances chama-se Evangelho segundo Jesus Cristo, buscou nos eventos históricos e evangelhos apócrifos a base de seu romance e visão de um Jesus o qual acha humanizado em seu trabalho. Saramago, comunista hormonal, em suas entrevistas e obras tece críticas às instituições religiosas e a dogmas, notadamente à Católica Romana, cujo Portugal está eivado de devoções e procissões. Sem discutir a obra de metaficção historiográfica em si, mas nas suas entrevistas e sobre o seu ateísmo confesso percebo uma frustração, um amargor em relação à humanidade má, à maldade humana, e penso que falta algo no seu Cristo humano e sem o deus cristão romanizado. A esperança. Me ponho a perguntar sobre a esperança dos evangelhos, como Marcos consegue trabalhar naquela catástrofe vivida na Judeia e no mundo do primeiro século, de perseguições, mortes, doenças e injustiças atrozes, com enorme número de escravos convertidos que afirmavam que o Senhor era Jesus. Saramago escreve bem, fluidamente, mas é exemplar a fluidez do secretário de Pedro e Paulo, João Marcos, cujo caderno foi a experiência histórica dos tempos dos apóstolos.

O termo evangelho segundo Mateus, segundo Lucas, segundo Marcos e segundo João, é corrente no dizer tradicional, mas em Marcos, um cristão despretensioso, ele o diz ao introduzir como um relatório, Evangelho DE Jesus Cristo, não segundo Jesus Cristo. O evangelho tem vida própria. O evangelista não construiu uma sinopse de seus cadernos de literatura, ele carreou uma mensagem que se arrastava desde há muito e das profecias de Isaías (notadamente o Segundo Isaías, cap. 40); e no mais, o evangelho fervilhava numa experiência que se alastrava pelo Império, sob perseguição.

O evangelho é um termo de euforia espiritual, de renovação, de júbilo, e um estilo de anúncio, o secretário dos apóstolos pelas missões no mundo de então até Roma capta a melhor abordagem e escreve uma obra inspirada e consagrada por todos que a viveram. O evangelista não cria um deus novo numa obra de metaficção, não faz mágica para surtir um efeito divino, sem temer contradições.  Marcos escreve enxuto, mas não árido, sem extensas adjetivações ou interferências discursivas, Marcos é como o profeta que Deus vem a ele e diz “escreve” e cala a boca, as frases valem por si, das quais o leitor fica perguntando onde, o quê, passa como uma espada de dois gumes cortando a história ao meio. Por certo isso não é obra de um escritor ou dos textos dos quatro evangelhos, estes são reflexos de um processo histórico conhecido como a experiência cristã que até hoje nos atinge de alguma forma e indelevelmente.

Talvez aquela divindade, a religiosidade contada, que nossos pais nos trouxeram não exista ou não é como a queiramos que seja, e descrer é como se quebrasse esse vínculo amoroso da imagem de ligação com nossos antepassados. O mundo e a filosofia do século passado e do nosso são mais cruéis, O mundo científico e forças atômicas dão o tom. Depois das guerras e destruições mundiais e em massa, da maldade nazista, do tráfico de órgãos, de olhos, fígados e outros. O mundo fica sem sentido, o ser humano mexe com os céus, com a lua, com os animais, com os biomas, com toda natureza que consegue tocar para o seu desfrute como a maçã do paraíso, inclusive destruindo-a e usando do seu semelhante de forma abjeta, escravizando pelas suas ambições mais sórdidas, é a negação de Deus. O existencialismo surge. Os intelectuais tiveram que criar o super-homem no lugar do deus antigo, sofrem mais e assim podem desfiar a sua descrença na forma de ateísmo pela frustração daquele sonho de fraternidade, de um mundo de justiça e paz. Parece que ainda hoje deus tem de existir confinado sob determinadas condições de temperatura e pressão, notadamente em templos e quando se está em estado elevado, etc. Deus perdeu a batalha? O fiel, de medo somatizado, é incapaz de se manifestar, berra como ovelha em redes sociais, trocando frases. Quem mudar o mundo?

Por certo Marcos e os evangelistas não puseram a divindade sob os seus domínios de conceitos, como faziam os romanos e como até eu chego a fazer. Estes escritores do século primeiro e cristãos primitivos acabam por aceitar a Deus nas vísceras como quer se manifeste, sem os ilusionismos de púlpito de hoje ou contos de vidas de santos de cabecinha torta. Os cristãos têm vida e luz próprias para viver o que professam como fé, os evangelhos escritos são reflexos dessa dinâmica. O evangelho é o encontro do humano com seu mistério, de nascimento, vida, sepultamento e ressurreição espiritual em um humano eleito (ungido), cujo mistério nenhum livro conseguiu preencher. Tem de encarar mesmo.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros

 

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