José Renato Nalini
A Academia Paulista de Letras, este ano a completar 111 anos de ininterrupta atividade, não paralisou com a pandemia. Tem realizado sessões virtuais todas as quintas-feiras, além de continuar com o Clube de Leitura. Na quinta-feira 3 de setembro, o insuperável Ruy Ohtake ofereceu esplêndida conferência, que denominou “Rio Tietê: a importância que nós não demos”. Foi excepcional oportunidade para reconstituir a tragédia praticada pelos homens, resultante de boas intenções, mas de uma visão equivocada, cujos resultados são nefastos e dos quais todos hoje somos testemunhas. Algumas omissas, outras indiferentes. Como se um rio agônico não fosse a manifestação mais eloquente de nossa falência moral.
O rio, límpido e piscoso, serpenteava sobre uma várzea fértil e pura. Foi canalizado e passou a servir como escoadouro para o esgotamento doméstico e para os resíduos químicos e tóxicos das indústrias que proliferaram em Piratininga. Para culminar, a população o converteu em coleta permanente de resíduos sólidos, para acolher o lixo que produzimos com uma volúpia cruel.
O resultado foi a morte do Tietê. Canal escuro e fétido cercado de veículos também sustentados pelo combustível fóssil poluente e mortal que é o petróleo. Tudo isso Ruy Ohtake mostrou com evidências científicas e com ilustrações que entristecem qualquer paulista: o antes e o depois do rio que convenceu os jesuítas a fundarem aqui o Colégio na festa do Apóstolo dos Gentios. Água é vida, sabiam os religiosos.
Apesar de tudo isso, Ruy Ohtake é otimista. Acredita numa reversão. Mostra o que se fez em Paris, com o rio Sena, em Londres, com o Tâmisa e o exemplo de Seul, que vários prefeitos paulistanos chegaram a visitar. Parar com o envenenamento faz milagres. A natureza é dadivosa. Volta a servir à Terra e à inclemente humanidade.
Simultaneamente a esse testemunho do arquiteto cuja vida é paradigma de crença na beleza como fator de aprimoramento do convívio, divulga-se um projeto na Usina da Traição, no Rio Pinheiros. Traição foi o que se vez com os três grandes rios paulistanos e com as centenas de córregos sepultados para servir ao automóvel. Alvíssaras para o projeto da agora chamada “Usina São Paulo”. Se isso é possível, por que não sonhar com a recuperação do Tietê e com a salvação das duas grandes represas que deveriam servir para dessedentar os paulistas e para servir como permanente e aprazível espaço de lazer, não para coletar sujeira?
Ouço há mais de cinquenta anos promessas de recuperar o Tietê. É hora de cumpri-las. Será que a pandemia trará como efeito benigno, a despoluição do nosso rio? Haverá coragem para liberá-lo das amarras das marginais e para devolver seu curso a uma várzea que poderia se tornar sedutor espaço para o lazer, para o esporte, para a cultura, para a vegetação ribeirinha e a fauna silvestre que um dia já habitou essas paragens? São Paulo tem de perseverar na vocação de conurbação cinza e perniciosa para o ideal de uma hígida qualidade existencial?
Ou continuaremos a rir de nossa calamidade, lembrando a piada que esta semana circulou nas redes sociais: Deus concedeu a três líderes mundiais responder a uma pergunta. Trump indaga quando é que o dólar se tornará a única moeda universal. Deus responde: “Isso ocorrerá, mas você já não estará entre nós!”. Em seguida, Putin pergunta quando é que o socialismo será adotado em todo o planeta. Deus retruca: “Isso um dia chegará, mas demorará tanto, que você já não estará na Terra”. Finalmente, o Presidente do Brasil questiona: “Quando é que o Tietê voltará a ter água límpida, em que se poderá nadar e a vida voltará a seu leito?”. A resposta divina: “Algum dia isso poderá acontecer. Mas levará tanto tempo que EU já não estarei por aqui…”.
Chegamos a rir de nossa desgraça, mas haveria motivo para chorar. O Tietê, como se encontra hoje, é o atestado explícito, escancarado e vergonhoso de nossa ignorância, insanidade e omissão.
O ser humano é uma entidade complexa, capaz de se reinventar. A lição de Ruy Ohtake deveria ser veiculada entre os influencers para que toda a população se conscientizasse de que é possível salvar aquilo que nos foi oferecido gratuitamente e que não hesitamos em corromper, a ponto de parecer inviável o retorno ao que um dia já foi.
Se houver determinação e foco, vontade e coragem, o Tietê poderá voltar a ser no amanhã, aquilo que nunca deveria ter deixado de ser. É o que as futuras gerações esperam de nós. Quando foi que perdemos a consciência em relação aos nossos compromissos com a natureza, da qual dependemos para que o fenômeno vital possa ter continuidade nesta maltratada Terra?
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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo