O regalo da mendiga

Camilo Irineu Quartarollo

 

Uma velha idosa de rosto sujo de fuligem de cana parou no portão da nossa casa. Ficou olhando, que alguém viesse de dentro. Saí eu com meus sete anos, então. Ela tinha um cheiro agridoce de suor e sei lá o que mais e olhava para mim de igual e, por fim, pediu a minha mãe, como se fossem amigas, a estranha e ela. Antes me fez voltar e, tirando uma bolacha de um lenço, me deu. Cheirei como um cachorrinho o regalo da mendiga, mas minha mãe apareceu na porta e assentiu, coma. Às escondidas minha mãe lhe deu algo e ela se foi. Você fica quieto, viu, Deus protege essas pessoas pobres, não pode fazer desfeita, se ela deu a bolacha agradeça e coma.

O que sei é que éramos pobres. Pobreza de dias incertos de se prover a mesa. Exceto nos domingos, quando tínhamos carne como os ricos, mas não filé-mignon.

Aos pobres resta a fé e a misericórdia, visto que políticas públicas… no Brasil políticas são feitas para ricos e por sorte ou acaso favorecem os cidadãos delas desprovidos. Por sorte. Os economistas estatísticos contam como regra o que é uma ligeira exceção. Pobre é malvisto até por outro pobre.

“Esses mendigos não saem do portão, você dá uma vez… já falei, eles voltam! Não dê nada na porta”. Parece que o mercado de boas ações estava em baixa naquela época do golpe militar, não para velhinhas que debulhavam terços e novenas. O governo nunca sabe o que fazer com seus doutos senhores de paletó e fardas, ou finge não saber, sobra a quem?

Outro dia lembrei-me daquela velha mendiga, o nome não, pois nem me disse e a esmola era em segredo, de portão fechado.

Dizem que o Espírito Santo vem em forma de pomba, das tantas que tem como saber qual, né?

Não se sabe e a obra divina é silenciosa, aparecem quando reverbera nas almas, como a luz no vale de Zebulon, onde Jesus viveu como fronteiriço fazendo o bem, como o Sol que toca os montes e se espraia. Nos tempos bíblicos, após a crucifixão de Jesus, judeus e cristãos montavam redes de ajuda aos famintos no pão partilhado. O templo destruído, as crucifixões em massa pela revolta, os campos destruídos, restava a mão divina de um Estevão e outros dar de comer aos pobres. De toda aquela horda Deus contava as migalhas e lágrimas de choro e, mesmo apedrejado, o povo não esqueceu Estevão.

Aquela velha mendiga voltou à memória deste senhor, nítida, como o gosto daquela bolacha velha, que tenho a sensação de que me fora como uma eucaristia fora do tempo de preparação. Talvez já possa missar e comungar como cristão agora o Cristo em corpo, alma, divindade, pobreza e misericórdia.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros

 

 

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