Alê Bragion
– Caixão aqui num entra!
Mas no entre o berro e o pulo, caixão e carpinteiro se instalaram no carro. Surdos por conveniência, criador e criatura pipocavam como se o berro num fosse com eles. Em fuga de má sorte, o povo da jardineira tirava os olhos e se esgueirava em plena curiosidade – olhando sem querer olhar a caixa preta reluzida. O motorista entornou o freio. A jardineira sacolejou para adiante até parar de bico. Piiiiiischh! Três meteram os chifres no tampo – seco (tou!).
– Coisa de morto aqui não pode, moço! A freguesia tem medo.
– Mas, Seo Oscar! Não foi que a carroça emborcou justo hoje. Fiquei no sem nenhum. Compreenda. A família do que se foi é que está na espera. Tenha compaixão, homem. O caso nem é coisa de se ganhar dinheiro: é caridade. No mais, o homem já apitou mesmo – qual é o problema? Agora é só vestir o paletó de madeira e pronto. Num é pra causo nem custo.
– A freguesia tem medo, moço.
– Mas e o pobre que se finou, Seo Oscar? Sem vida e sem campa. Dai descanso a quem merece, homem. Colabore. E olhe que bulir com essas coisas no prejudicado da hora pode trazer má sorte. Se eu fosse o Senhor…
O homem ferveu a máquina – disparou:
– Então, que aqui isso só viaja se for em cima, de telhado, escondido da freguesia. Que se o povo bate o olho no azar deitado nos bancos, não sobe que é nenhum e eu perco o dia.
– Mas, Seo Oscar…
– É pegar ou largar – que assim num dou arranco.
Tomando a fresca da tarde, lá se foram caixão e carpinteiro por cima do coletivo – batendo de ponto em ponto pela cidade. No miolo do carro, o povaréu foi se perdendo e se partindo pelo caminho, nas esquinas do estou em casa.
No quase último ponto, no quase derradeiro da entrega, o que era um vento virou água: tempão de Deus me livre e leve – que quem morre em dia de chuva vai direto pro céu.
No teto da jardineira, fugido da noite mais preta, meteu-se o carpinteiro no caixão fechado, seguro do rio a rodo que agora caía. E lá ficou, seco e deitado, o homem – descansando no descansado o turno e returno da viagem, e esquentando a caixa para o falecido que viria depois.
E o depois logo se deu. De poça em poça, chegou a jardineira à sua parada final. Com ela se foi indo também a chuva, num finda não finda meio sem fim. Na esquina, a lua e a fila – comprida e magra no ponto de embarque à espera do carro, que dessa vez trazia no teto, para espanto dos que esperavam, um caixão de defunto todo brilhante.
No baque do freio, na parada, diante das gentes, o homem-carpinterio despertou das profundas do impossível. Num muque demais de repente, abriu ele por dentro o caixão diante dos olhos do povo.
– Cabô a chuva? – perguntou de cima.
Bate perna que nunca nem jamais se esqueceu. Entre gritos dos infernos e ex-conjuros, a jardineira se esvaziou num corre-corre de louco sem oco nem toco ou beira. Que não sobrou senão nenhum para subir na jardineira – que agora entrava para a estória das conversas ribeiras.
Depois, no tempo.
Seo Oscar perdeu o ponto e aposentou a jardineira de uma vez – que ninguém mais queria andar nela de novo.
Pobre Seo Oscar.
O povo é por demais supersticioso.