No crepitar dos primeiros gravetos. Num grupo junto ao fogo foi que Abayomi nasceu. Onde os assuntos vêm, a palavra se assenta e cresce, vem, em histórias que… não importa, ali tem credibilidade. Nessas tribos antigas que a África escondeu nas suas noites, a palavra vai de boca em boca, de ouvido em ouvido, naturalmente, enquanto as crianças pequenas mamam, outras correm em volta como vagalumes.
Abayomis, elas existem, palavra de África, a mãe que lha deu. Comprou? Não, lá nada se compra, essa coisa de lucro puro e simples não existe ali, troca-se, presenteia-se, se dá… o resto a natureza provê. A mãe natureza entregou a boneca às mãos humanas, às mães humanas.
É só uma boneca, viu, mas como as crianças correm, brincam, e aprendem o amor e o respeito pelo presente. Com o tempo a própria boneca inerte ganha vida pela energia do carinho devotado.
Na África livre, a menina podia ganhá-la, sair carregando e mostrar às amiguinhas. Olha, vejam, ela fica de pé, fica de pé, Abayomi. Olha o que eu ganhei. Uma bonequinha com trançado de panos que minha mãe fez, que minha tia fez, que… foi dado por carinho, por amor.
Entretanto, a Abayomi pode nascer nos mais variados acontecimentos de uma menina. Para Ayana foi num navio. De uma mãe de navio.
Recebera Abayomi de uma mãe de navio, já extenuada, caída no tablado e encostada na murada, onde por certo seria lançada ao mar, mas ela conseguiu nos repuxos da própria roupa, de si arrancar uns trapos do barrado das vestes e de olhos fechados foi fazendo um nó aqui e outro ali; iluminada pela força dos orixás suas mãos negras e firmes entrelaçavam ligaduras mais fortes que nó de marinheiro, coisas que na vida dificilmente se desatam como a irmandade dos cativos e filhos de barco. E tirou ainda uma voz do fundo de sua rouquidão que mais parecia uma sororoca, numa força sobre-humana:
– Comé o nome de sunsê? Não percisa falá. Pegue aqui, ói, é a Abayomi de sunsê – disse a mãe de navio antes de falecer e entregar a Abayomi que começa a viver.
Um dia Abayomi da infância volta, fica de pé como uma menina, conversa, dá vida onde à aridez dos adultos a tenta matar. Ninguém pode escravizar sonhos.
No meu livro — A ressurreição de Abayomi —, eu coloco em vislumbre a vida de uma cativa no contexto dos sonhos que não podem morrer, nas vidas que se podem matar, mas, apesar da crueldade do século XIX, de quando traziam ao Rio de Janeiro meninas para reproduzir seu martírio, Abayomi também veio carregando sonhos e vida. Ninguém nasce cativo, a vida está além da escravidão de morte. Viva Abayomi.