O mito da recontratação

Eduardo Pragmácio Filho

 

Um dos principais efeitos econômicos provocados pela pandemia do Covid-19 foi a dispensa de milhares de trabalhadores. Muitas empresas brasileiras fecharam as portas ou tiveram que enxugar seu quadro de empregados para enfrentar os problemas financeiros. Desde o mês de março, o Governo Federal vem implementando algumas medidas na área trabalhista com o objetivo de atenuar os reflexos no mercado de trabalho. Uma dessas medidas foi a Portaria 16.655, que permite a recontratação em menos de 90 dias nos casos de despedida sem justa causa. Segundo o texto, essa regra só é válida para dispensas feitas no período do estado de calamidade, ou seja, até dezembro deste ano.

Importante frisar que no Brasil não existe uma lei clara, direta e expressa que impeça a recontratação de empregados. A CLT, portanto, não veda. Há um mito de que só poderia haver a recontratação após 6 meses do término do contrato de trabalho. Isto se baseia em uma interpretação errônea, ao meu ver, do artigo 452 da CLT. Tal dispositivo não veda a recontratação, apenas cria uma presunção de que um novo contrato de emprego por prazo determinado, após o término de outro antes de seis meses, presume-se como sendo de prazo indeterminado. Só isso. Não há vedação para (re)contratação antes.

Alerte-se que a fiscalização do trabalho, no entanto, tem um entendimento antigo, contido na Portaria 384/1992 do (extinto) Ministério do Trabalho (hoje Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia) de que a recontratação de empregados no interregno de 90 (noventa) dias é presumida como fraudulenta, pois, em princípio, estaria simulando uma despedida sem justa causa para a liberação de FGTS e habilitação do trabalhador no seguro-desemprego, fato que traria ônus para o governo.

É importante esclarecer que é mera presunção da Portaria 384/1992, que serve de orientação para a inspeção do trabalho e, por consequência, para empregados e empregadores. Se constatada essa fraude, as repercussões vão para além do mero ilícito trabalhista, alcançam inclusive a esfera penal. Em outras palavras, se a recontratação ocorre de fato, de forma lícita e verdadeira, caberá à empresa provar, cabalmente, a validade da despedida, sob pena de responsabilidade trabalhista e penal.

Um exemplo disso seria um empregado que pede demissão de um emprego, vai trabalhar em outro e, um mês após, pede para voltar. Não se trata de fraude presumida, é apenas a dinâmica do mercado de trabalho. É de se notar, também, nesse caso, que não houve vontade de fraudar a lei, pois com o pedido de demissão não haveria possibilidade de saque do FGTS nem habilitação no seguro-desemprego.

O que a fiscalização pretende, portanto, com a presunção de fraude na recontratação em período inferior a 90 dias, é desestimular as simulações de término do contrato para evitar o saque do FGTS e não onerar o Estado com o pagamento de seguro-desemprego.

Recentemente, diante da pandemia, da incerteza da volta de muitos negócios e da inviabilidade de tantos outros, o que gerou realmente a despedida de milhares de trabalhadores, o governo federal flexibilizou aquele entendimento antigo da Portaria 384/1992 e orientou a fiscalização a afastar a presunção de fraude na recontratação de empregado em período inferior a 90 dias, mas somente durante o período de calamidade pública, conforme se vê da Portaria 16.655/2020 do Secretário Especial de Previdência e Trabalho.

Essa medida, a um só tempo, evita abuso em eventual fiscalização e tranquiliza empresários para a retomada de seus negócios, afinal a mão de obra é um ativo especialíssimo e fundamental em vários ramos empresariais, levando em consideração que o término do contrato de trabalho se deu por evento alheio à vontade das partes, por questão de saúde pública, em virtude da impossibilidade de aglomeração de pessoas.

Ao final, é bom lembrar que, quando o legislador quer criar algum impedimento para a recontratação, ele o faz expressamente, como é o caso da terceirização, em que um empregado despedido e que será contratado como terceirizado, para o mesmo tomador (o antigo empregador), deve cumprir uma quarentena de 18 meses, segundo o artigo 5º-C da Lei 6.019/1974.

O mito da recontratação precisa ser derrubado. A Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019, art. 3º, V) garante a presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica do empresário. É preciso harmonizar o princípio protetor do direito do trabalho com a livre iniciativa, de modo a preservar a empresa, sem se descuidar da dignidade do trabalhador.

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Eduardo Pragmácio Filho, doutor em Direito do Trabalho pela PUC-SP, pesquisador do Getrab-USP, sócio do escritório Furtado Pragmácio Advogados e autor do livro A boa-fé nas negociações coletivas trabalhistas

 

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