Decisão emblemática do TSE

Marcelo Aith

 

Decisão recente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por 6 votos a 1, rejeitou a possibilidade de políticos terem o mandato cassado por abuso de poder religioso já na próxima eleição. O ministro relator Edson Fachin, em que pese tenha afastado no caso concreto o abuso, propôs a fixação de tese no sentido de criar um tipo de abuso específico consistente no “abuso de poder religioso”. O caso analisado é foi o Recurso Especial nº 000008285, que envolve a vereadora Valdirene Tavares (Republicanos), de Luziânia (GO), que é  pastora da Assembleia de Deus e foi acusada de usar sua posição na igreja para promover a candidatura, influenciando o voto de fiéis.

O ministro Fachin votou contra a cassação da vereadora, por não encontrar provas suficientes no caso concreto, mas ressaltou que Estado e religião devem ser mantidos separados para garantir a livre escolha dos eleitores. Integrantes da Corte avaliavam que o caso em si não era dos melhores para se lançar a figura do abuso de poder religioso.

Importante ressaltar que, atualmente, a legislação eleitoral prevê três tipos de abuso de poder que podem levar à perda do mandato: o político, o econômico e o uso indevido dos meios de comunicação.

No julgamento, o ministro Luís Felipe Salomão ressaltou que não há uma previsão legal que combata especificamente o abuso de poder religioso – o que dependeria de aprovação de uma lei pelo Congresso. Segundo o ministro, eventuais práticas ilícitas que venham a ser cometidas na esfera religiosa podem ser punidas por meio de dispositivos já previstos na legislação eleitoral, tais como propaganda irregular, compra de votos, abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação. E o ministro Og Fernandes foi na mesma linha. “Não vejo como conceber o abuso de poder religioso de forma autônoma.  Tenho o entendimento de que não é preciso destacar uma categoria para sedimentar que a Constituição proíbe a fraude às eleições, de modo que eventuais abusos praticados por lideranças, sejam elas eclesiásticas, sindicais, patronais, esportivas, artísticas, corporativas, docentes e que visam, em última análise, a influenciar a livre escolha do eleitor, estão incluídas na expressão ‘fraude’, cuja acepção é ampla e abrange a coação oriunda da ascendência desses líderes sobre determinado grupo de eleitores”, disse Og. Og, Salomão e Sérgio Banhos acompanharam o entendimento dos ministros Alexandre de Moraes e Tarcísio Vieira, que já haviam votado contra a criação da figura do abuso de poder religioso.

As questões que surgiram com esse julgamento foram: pode o Tribunal Superior Eleitoral criar uma nova figura de abuso? Há na espécie interferência do Poder Judiciário nas funções do Poder Legislativo? Por fim, há necessidade de criação de um tipo autônomo para apurar eventual abuso por parte de “autoridades religiosos” em favor de candidato?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos garante, em seu artigo 18, que: “Todo ser humano tem direito a liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular”.

O artigo 5º, VI, da Constituição da República: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Qual o limite da autonomia religiosa no processo eleitoral? O artigo 19, I, da Constituição da República estabelece a cláusula geral da separação Estado-igreja (Estado laico), ao dispor que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

A liberdade religiosa não constitui direito absoluto. Não há direito absoluto. O ministro Henrique Neves destacou, com acerto, que a liberdade de pregar a religião, essencialmente relacionada com a manifestação da fé e da crença, não pode ser invocada como escudo para a prática de atos vedados pela legislação. (TSE, RO 265308, j. 7/3/2017, DJe 5/4/2017, p. 2).

Deve haver vedação à participação das religiões no processo político, mas quais são os limites segundo o Tribunal Superior Eleitoral? Nosso ordenamento jurídico não veda a criação de partidos políticos declaradamente confessionais e tampouco a candidatura de atores políticos ligados diretamente a instituições religiosas, muito embora haja limitação quanto à fonte de financiamento das campanhas e a proibição de propaganda nos templos de qualquer culto.

Não obstante inexistir expressamente no ordenamento jurídico a figura do abuso do poder religioso, seria ele prática punível, tal e qual os abusos de poder econômico e/ou poder político? Muitos dos casos que chegam aos tribunais não utilizam o termo “abuso de poder religioso”, mas as situações fáticas e os argumentos que embasam as decisões indicam o abuso de poder e o caráter religioso como um subtipo do ilícito.

Portanto, foi acertada a decisão da Corte Superior Eleitoral ao não criar a figura do abuso do poder religioso, mesmo porque despicienda, na medida em que pode ser subsumida nas figuras de abuso de poder de autoridade ou abuso dos meios de comunicação, já previstos expressamente no artigo 22, caput, da Lei Complementar 64/90.

_____

Marcelo Aith, advogado, especialista em Direito Público e Eleitoral, professor convidado da Escola Paulista de Direito

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima