Rio verde, choramingas

Camilo Irineu Quartarollo

 

A chuva na janela me favorece, escorre lacrimosa pela vidraça que me protege, chora copiosamente fora o que sinto por dentro e não posso chorar.

Não posso dar meu riso histriônico, bater nos ombros, brincar com meus iguais, apertar as mãos quentes de amigos ou curvar-me a beijar mãos idosas.

Aquartelada a dor da alma, estou a olhar como Quixote meu Rocinante no pasto. Sancho Pança permanece confinado em casa, tem comorbidades sérias.

A chuva fina, silenciosa, discreta, como choro de mãe. Deus conta as lágrimas das mulheres, diz o talmude – livro dos judeus. Mães ninam as lágrimas que os dias nos escorrem. Aprendemos a chorar de berço, chorar porque cremos no consolo.

Deus não omitiria a ninguém sua contagem lacrimeira. Dirão é mimimi, mas por certo o Altíssimo contou as lágrimas de Maria e as de Jesus no sepulcro de Lázaro. Oh, mãe por que tantas lágrimas, como dos seus olhos vertessem águas de um rio e de chuvas sobre as pedras do Piracicaba. Há olhos que não mais choram, olhos d’água secam e cobrem a terra em luto junto aos arbustos retorcidos lá no Amazonas, como filhos da floresta. Pessoas e animais, se estes escapam das queimadas ou ataques de posseiros morrem pela falta de alimentos da terra ressequida.

As lágrimas dos rios. Deus as conta também? Ora, os rios voadores, lágrimas do Amazonas. Estes céus amazônicos, duzentos milhões de litros d’água aéreas em milhões de nuvens, choram contidas nas queimadas mórbidas de hoje, os olhos ardem, o coração trinca com as queimadas, criminosas.

Diríamos que o Amazonas é longe, aqui temos nossas próprias chuvas! Engano, caro leitor, as nuvens que se formam no nosso litoral paulista não ultrapassam a serra do mar e desfazem numa altura de mil metros de serra e essas águas ficam na Mata Atlântica ou voltam novamente ao mar. Nossas chuvas, pasmem, não são nossas, nossas lágrimas são outras. São amazônidas!

As águas que aqui vêm chover se formam no mar do nordeste brasileiro e, antes de virem para cá, avançam até a Amazônia sorvendo sua umidade nativa, vão até a cordilheira dos Andes e descem levados pela corrente continental ao sul e sudeste do nosso e de outros países e, sem estes rios flutuantes, também haverá secura e fome na chamada “locomotiva do Brasil”, com mais crises respiratórias e fome, no Estado de São Paulo.

É uma chuvinha que vem escondida nessa névoa auspiciosa, nesses rios aqui e acolá, esparsas mas consistentes. Há ainda as névoas que se pegam nos cumes das cordilheiras a baixas temperaturas como lágrimas enregeladas, mas que vão se derretendo nos corpos d’água e afluentes do rio Amazonas, num círculo virtuoso. As queimadas, criminosas, podem quebrar este ciclo e chegar aqui também, nessas vidraças que me choram e você um dia vai chorar também, pois até o Piracicaba pode secar por um crime que não cometeu. Ele não, mas os anhangueras malditos. Perderemos nascentes. Podemos ter que cavar abaixo do volume morto e talvez ir ao Salto tirar água de pedras e vermos peixes agonizando.

Quando a chuva cair sobre o seu telhado outra vez não esqueça de suspirar ao altíssimo que nunca nos falte a dadivosa corrente voadora de águas sagradas do Amazonas e nem tenhamos lágrimas de tristeza, mas de consolo.

(N.B. – Orientações sobre a estrutura atmosférica dos rios flutuantes do professor e ex-capuchinho Antonio Marmo Cabral, texto meu, inspirado em conversas de Live do grupo whatsApp dos ex-capuchinhos e na palestra de D. Claudio Hummes sobre o Sínodo da Amazônia, na Paróquia São Judas Tadeu, em Piracicaba-SP)

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros

 

 

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