Anjo, quando cai do céu, flutua que nem papel. E tem, hoje, anjo que caia de maduro do céu estrelado ou escuro? Na biblioteca-casa da Jô, tem – ô, se tem! O caso é que esta cidade, sertão sem verdade em que (quase) vivemos, comporta lá pelas bandas perdidas de Dois Córregos uma casa-livro-encantação de propriedade pessoana e pessoal da mulher que é a piracicabana encarnação de Portugal: Josiane-Mor, a quem chamam-lhe Jô, aquela do Pessoa e do amor ao que se publica ou se escreve sobre a lusitana verdade da heteronímica vaidade do eu poético em expansão. Não entendeu? Deixe para lá. Tem problema, não. Só guarde no coração que, no bairro de Dois Córregos, em Piracicaba, um anjo caiu do céu profundo e se estatelou no chão, lá no fundo do quintal da biblioteca-casa de Josiane – a professora. Ora, veja. Ora, viva. Assim fora.
E fora tanto que, pelas alturas da noite entrada, a Jô e a sua cachorrada ouviram um estrondo – desses de pancada – como se alguém despencasse grosso do alto de uma escada. Mas não pensem os incautos, não – que lá fora da biblioteca-casa da Jô nem tem escada nem nada, tem só um muro alto que arto, para mais de cinco metros, separando a casa da madrugada. Assim que o barulho se fez e se ouviu – bum! – a primeira cachorra latiu chamando a segunda, atrasada. Depois veio a terceira. E a cachorrada toda em alarme alarmou a vizinhança avizinhada. Depois, foi a própria professora Josiane, no vidro da porta fechada, quem viu professoral um anjo (ou um homem?) caído no quintal, pelado que nem alma penada.
– “Eu vou chamar a polícia!” – berrou a Josiane-Mor, encarnada em preocupação, enquanto tentava recolher a cachorrada para partir em circulação.
– “Polícia? Pra mim?” – respondeu o peladão despencado.
– “Não! Pra mim!” – treplicou a professora com ironia desafinada, apesar do medo, para não perder a piada.
– “E por quê? Qué que eu fiz?” – reagiu o caído, todo contundido e de perna quebrada.
– “E eu é que sei?” – disse a Jô, já refletindo na resposta sem sentido que estava dada.
– “Eu caí do céu, dona” – afirmou o peladão, cheirando à cachaça. “Eu caí do céu. Sou um anjo. Um anjo sem asa, sem graça e de perna quebrada”.
– “Eu vou é chamar a polícia, se vou! Chega de conversa fiada!” – a professora sentenciou.
– “Chame um padre, dona! Um padre, então! Que eu sou um anjo, não sou ladrão”.
Enquanto o pelado, coitado, todo transtornado e pulando numa perna só tirava a terra dos vasos do quintal e enchia com ela os ralos que encontrava, a Jô chamou os santos, os deuses, os orixás e um policial que morava de perto no por ali. No logo ser das coisas que demoram, a sirene das ambulâncias, das patrulhas e das conversas dos ambulantes que ambulavam no entorno, em curiosidade, começaram a se fazer querer ouvir naquela vírgula da cidade. E o peladão, pelado, estrupiado da despencação, se pôs – por fim – a esperar sentado no chão o desenrolar daquela confusão a quem ele assistia com dileta discrição de público, não de protagonista em pleno palco-ação.
– “Você outra vez”, disse o guarda ao anjo caído quando a polícia chegou para atender o ocorrido. “Já pegamos você ontem, na Santa Terezinha aqui vizinha. Que diabos!”
– “Diabo não, patrão. Que eu sou anjo, pobre e pelado” – respondeu o abençoado. “É a vida, patrão. Que os tempos também não andam fáceis para os anjos, não” – se explicou ainda sem se explicar o exemplar lunar de peladão.
E foi assim que, desde a Criação, pela primeira vez um anjo caído foi levado para xadrez dentro de um camburão.
No quintal da casa encantação-biblioteca da Jô, no entanto, o segredo das coisas vividas continuou – pois as plantas, remexidas, nos vasos de terra tocados pelo anjo peladão, floresceram que antecipadas, mais que nunca tão coloridas, floridas e perfumadas. Até hoje, no diz-se dizer do povo das redondezas, sabe-se que às noites, quando o sono bate e o mundo dorme, a cachorrada da Jô ainda late para as flores que reluzem no quintal, douradas que acendidas, fulgurando, fulgurantes, no mistério angelical mais que profundo da vida.