Álvaro Gradim
A Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS), como os demais organismos reguladores similares, foi criada no âmbito do Programa Nacional de Desestatização e das Reformas Constitucionais, na década de 1990, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. O objetivo precípuo dessas autarquias é garantir que os interesses da iniciativa privada não prevaleçam perante os dos indivíduos e da sociedade, nos mercados de caráter público explorados por empresas e companhias particulares.
Foi exatamente esta a alegação da ANS ao recorrer na Justiça da decisão liminar que determinava a cobertura dos testes sorológicos pelos convênios e o seguro-saúde, justificando a controvérsia de estudos sobre a efetividade desses exames. Ante a alegada possibilidade de que haja muitos resultados com falso-negativo, a agência achou por bem recorrer, “entendendo” que, com isso, estaria defendendo o consumidor, pois o custo dos testes poderia ser repassado ao preço dos convênios, onerando os segurados.
Questionável avaliação, numa situação de calamidade pública mundial, na qual a agência deveria, sim, atuar no sentido de impedir aumentos de valor dos convênios e seguro-saúde neste momento e não advogar em favor da retirada de um serviço dos planos de cobertura. Parece comprovado o fato de que muitas pessoas têm se beneficiado dos testes sorológicos de Covid-19, o que evidencia a inoportunidade da decisão adotada pela ANS. Cabe esclarecer que esses exames identificam se o paciente apresenta anticorpos, ou seja, se já teve a doença, inclusive de maneira assintomática, estando, portanto, imune.
Proteger o consumidor, num momento grave como o presente, é colocar à disposição dos brasileiros todas as ferramentas e recursos médicos possíveis para ajudá-lo no enfrentamento da pandemia. Nesse sentido, a posição da agência causa bastante estranheza. Sua avaliação, a rigor, retira uma possibilidade de que milhares de pessoas façam os testes.
Tal posição não atinge apenas os cidadãos. Ao inviabilizar o teste para as pessoas que têm convênio médico ou seguro-saúde, a agência contribuiu para congestionar e onerar o SUS. Ou seja, está transferindo para o Estado um custo e atribuições que deveriam ser das operadoras privadas.
Resguardando-se de uma eventual responsabilidade sobre a decisão final, a agência decidiu convocar audiência pública para decidir a questão. É como se a Covid-19 não fosse uma gravíssima emergência. Até a abertura e conclusão da consulta, tabulação dos resultados e tomada de decisão nela baseada, quantos brasileiros seguirão sem fazer o teste? Qual o prejuízo disso para a saúde dessas pessoas, para as empresas que planejam hoje suas operações com base no potencial de imunidade de seus colaboradores e para o Estado, que poderá assimilar parte dos serviços que deixam de ser bancados pelas operadoras privadas?
Essas são perguntas que a ANS deveria ter respondido, para ela própria, antes de tomar a tempestiva atitude de recorrer da medida liminar concedida pela Justiça Federal de Pernambuco, derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região. No episódio, a postura da agência pareceu contrastar frontalmente com os objetivos de sua criação, pela Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000. Afinal, quem ela está defendendo nesse caso específico?
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Álvaro Gradim, médico especialista em Pneumologia, formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e presidente da Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo (AFPESP).