Abuso recursal

José Renato Nalini

 

Na minha visão simplória de quem foi estudar Direito pensando em fazer justiça para com o semelhante, sempre encarei a ciência jurídica em sua função instrumental. Para mim, Direito é ferramenta de resolução de problemas humanos. Embora provido de razão, o humano cria desinteligências no convívio. Não sabe – ou desaprendeu – assumir responsabilidades, honrar compromissos, observar códigos morais e éticos. Disso deriva a necessidade de se servir de um aparato suficientemente hábil a resolver os desentendimentos.

Ocorre que a mente labiríntica de alguns gênios consegue tornar complexo o que, em substância, é simples. Sofisticou-se, de tal maneira, o conjunto de saberes da frondosa árvore jurídica, sempre propensa a acolher mais ramos, que nesse percurso doutrinário-dogmático, a Justiça perdeu prioridade. É algo que está em terceiro plano.

Em primeiro, vem o superdimensionamento do sistema Justiça. Integrado pela Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia, Tribunais de Contas e delegações do serviço extrajudicial. Aquilo que deveria ser a “ultima ratio”, passou a ser a primeiríssima. Não se consegue observar espontaneamente o ordenamento. É preciso provocar um estamento estatal complexo e dispendioso para fazer com que as pessoas façam o que deveriam fazer.

Depois, reafirmar que o Judiciário existe para trazer “segurança jurídica”, não para fazer Justiça. Este bem intangível, plurissêmico, considerado síntese de todas as virtudes, estaria longe das possibilidades dos seres humanos, falíveis e limitados, encarregados da dicção do justo concreto.

Só em terceiro lugar, e apenas para alguns, o equipamento Justiça tem por finalidade fazer justiça. E estes enfrentam consistente resistência. Pois o conceito de justiça é o que reside no seu foro íntimo e depende de uma série de circunstâncias: sua origem, etnia, circunstâncias socio-econômicas, religiosas, filosóficas, etc. Cada qual pode nutrir e desenvolver uma tipologia própria do que seria “justiça”.

Do aprofundamento dos estudos jurídicos deriva um sistema Justiça pouco funcional. O Brasil propala contar com um Judiciário “uno”, mas tem cinco ramos de Justiça. Dois deles identicamente chamados “comuns”. Só que um para a União e outro para o Estado. Só faltou a Justiça municipal, o que seria coerente se o propósito fosse delimitar a jurisdição a cada entidade federativa.

Não satisfeitos, os cultores do modelo chegaram ao paroxismo absurdo de quatro instâncias, ou graus de jurisdição. O processo começa na primeira instância, e deveria terminar com a decisão do juízo monocrático. Mas passa pela segunda instância, os Tribunais Estaduais ou Regionais. Vai para o STJ – Superior Tribunal de Justiça, que deveria ser Corte de Cassação, para uniformizar a jurisprudência da lei federal, mas se converteu no terceiro degrau, que revolve o mérito e muda o teor da decisão da segunda instância. E pode chegar ao STF (Supremo Tribunal Federal), que é o ápice do ordenamento, cuja missão deveria ser a guarda precípua da Constituição, mas que se tornou uma quarta instância.

Nesse doloroso percurso do que deveriam ser quatro degraus, mas que se transformam em infinita escadaria, tantas e tão criativas modalidades de forçar o Judiciário a reapreciar o mesmo tema inúmeras vezes, o sequioso de justiça chega a acreditar que a instituição mais serve a institucionalizar os conflitos do que resolvê-los.

A criatividade dos profissionais do direito é um território suscetível de produção de inúmeras táticas recursais. Embargos de declaração tirados de embargos de declaração e numa sequência exasperante, porque sempre haverá condições de questionar a incompletude da decisão anterior.

Ainda recentemente, o STF teve de relembrar que a possibilidade de impugnação de ato normativo municipal perante o Tribunal de Justiça local, em sede concentrada, tendo-se por parâmetro de controle dispositivo da Constituição Estadual, ou mesmo da Constituição Federal, desde que se trate de norma de reprodução obrigatória, caracteriza meio eficaz para sanar a lesividade apontada pela parte, de mesmo alcance e celeridade que a arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o STF. No caso, o Supremo enfatizou que restava desatendido o requisito da subsidiariedade, consoante dispõe o artigo 4º, § 1º, da Lei 9.882/1999.

A ação de descumprimento de preceito fundamental 482 pretendia rediscutir o mérito das decisões do STF no âmbito das repercussões gerais em inúmeros precedentes. Decidiu o órgão de cúpula da Justiça brasileira ser incabível a utilização de Arguição de Preceito Fundamental para discussão de tese firmada em julgamento de Repercussão Geral, bem como inadequado o seu uso como atalho recursal para postular diretamente ao STF a observância, por Tribunais locais, de precedente vinculante estabelecido sob a sistemática da já citada Repercussão Geral.

Alguém acredita que o tema foi definitivamente solucionado? Ou esta “República da Hermenêutica” já dispõe de outras formatações para fazer com que haja outra manifestação do Tribunal que fala por último?

Essa insistência configuraria abuso recursal ou está inserida no sacrossanto direito de exaurir as discussões jurídicas, até que alguém se resigne com a derradeira dicção ou perca o interesse pela causa?

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL)

 

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