A Constituição não tem culpa

Almir Pazzianotto Pinto

                                                                                          

Tomo de empréstimo título de artigo escrito por Norberto Bobbio, encontrado no livro As Ideologias e o Poder em Crise, cuja leitura é recomendável ao primeiro escalão do governo.

Antes de prosseguir é necessário procurar entender o significado da Constituição. Getúlio Vargas tê-la-ia comparado às virgens: “feita para ser violada”. Para Charles De Gaulle é simples invólucro, “cujo conteúdo pode ser modificado”. Simon Bolívar a definiu como mero caderno. O autorizado Dicionário Houaiss diz ser “a lei máxima, a qual todas as demais leis devem se ajustar”. Willian Orville Douglas, Juiz da Suprema Corte Americana, escreveu que é “uma Carta de Direitos restringindo o poder do governo federal”. Na lição de João Barbalho, comentarista ilustre da Constituição de 1891, “A Constituição organiza a república, garantindo a liberdade e direitos individuais e políticos, bem como determinando as condições e limites nos quais se exercem os poderes públicos”. A frase de Barbalho se encaixa na regra áurea da Carta Imperial de 1824, cujo Art. 178 prescrevia: “É constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos; tudo que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades requeridas, pelas Legislaturas ordinárias”.

Breve estudo de textos históricos do Direito Constitucional revelará como cada constituição procurou refletir as aspirações e as condições políticas e sociais de determinado momento. Dos primeiros documentos, orientados no sentido da organização política da Nação, como o foi a Carta Imperial de 1824, em pouco mais um século transitaram para a construção do Estado de Direitos Sociais, do qual foram precursoras a Constituição do México de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919.

A Constituição de 1988 foi elaborada dentro de clima dominado por espírito revanchista, inspirado pela necessidade de sepultar o regime militar. Não bastava substituir a Constituição de 1969, conhecida como Emenda nº 1/69. Fazia-se necessário mais. Além da construção do Estado Democrático de Direito era preciso garantir ao povo o país da Justiça Social. Redigida sob o domínio de utopia ofereceu mais do que a subestrutura econômica da Nação subdesenvolvida poderia assegurar. Comparemos o bombástico Preâmbulo com o sóbrio Art. 2 da Constituição francesa de 1958, que apenas diz: “A França é uma república indivisível, leiga, democrática e social. Assegurará a igualdade perante a lei a todos os cidadãos sem distinção de origem, ou religião e respeitará todas as crenças”.

Veja-se o abundante rol de direitos sociais do Art. 6º: À redação original compreendia educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, à infância e assistência aos desamparados. A Emenda 90/2015 lhe acresceu o direito à alimentação, à moradia e ao transporte.

O Art. 7º trata dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais. Envereda por matérias típicas de legislação ordinária. Em 1986 a crise mundial do mercado de trabalho era conhecida e debatida na OIT e nos países desenvolvidos. O desemprego imenso provocava a expansão do mercado informal.  Durante dois anos os membros da Constituinte permaneceram alheios à vida real. Não houve uma única voz lúcida no plenário para adverti-los de que boa parte dos direitos sociais, como o salário mínimo nas condições definidas no inciso IV ou a proteção contra a automação prevista no inciso XXVII, pertenciam ao plano do imaginário.

A pandemia do Covid-19 liquidou as últimas ilusões e nos mostrou a vida como de fato é. A reconstrução do mercado formal de trabalho enfrentará terríveis obstáculos.  Persistem o clima de incerteza jurídica, a dificuldade de captação de investimentos externos, a globalização, a automação, a robotização. O isolamento social, entretanto, multiplicou as oportunidades do exercício do teletrabalho, enfraquecendo os laços de subordinação e dependência. Em situação de irremediável desemprego, as vantagens para os contratantes são evidentes, com a redução de custos, economia de espaço, tempo e dinheiro, aumento do conforto, da renda e maior produtividade.

Os desafios são grandes e alguns desconhecidos. A duras penas poderemos superá-los.

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Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST). “Correio Braziliense”, 8/7/2020.

 

 

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