Pessoas do Além

Camilo Irineu Quartarollo

 

O senhor é vivo? Claro! Claro ou Vivo? Vivinho, claro. O que deseja? Um colírio, minha vista está embaçada. Ah, então é a farmácia da esquina que o senhor quer ir, viu. Aqui não tem? Claro que não, aqui não é farmácia.  Foi difícil atravessar o sinaleiro e esses anúncios iluminados confundem a gente, mas eu vi um monte de gente entrando de máscaras aqui, né. Sim, mas é a pandemia. Mas você tem álcool gel? Tenho. Mas não tem colírio? Colírio é somente o que uso ao trocar as lentes. Você usa lentes?! Sim, o senhor também pode usar, eu tenho uma para cada dia da semana. Tem pra vender? Não, aqui não é óptica. Eu tinha um par de óculos, mas vivia quebrando a perna. Hoje em dia nem perna de óculos aguentam, imagine as minhas. É, são fracos mesmo. Uma pisadinha já quebra! Mas o senhor pisou nos óculos? Eu tenho a vista embaçada, cansada, né, e olhe, você mesma, para mim é um fantasma na minha frente. É? Deve ser a pandemia mesmo, fico muito sozinho e vejo vulto pela casa, agora até aqui na rua também, aliás, todo mundo se esconde nas casas, “fique em casa”, dizem; eu sempre ficava mesmo. Hum. Não é melhor o senhor ir à farmácia da esquina então. Ah, vou, mas começou a garoar. Não tem guarda-chuvas? Não, quebrou a vareta. Ah! Quer meu colírio? Não, você não vai ficar sem, né, ainda mais usando todos os dias. Não, só empresto pro senhor desembaçar os olhos! Ah, obrigado. Mas, senhor, tire os óculos antes. Que óculos? Estes encavalados no seu nariz. Uh, nem percebi ao calçá-los. Calçá-los?! É, não sei como fala, você entendeu, né? Sim, quiquiqui (risos). Está rindo por quê? Como você diz quando põe as lentes? Coloco. Tá vendo, é diferente, lentes é colocar e óculos é calçar. Desculpe, rsrs, mas o seu está montado no seu nariz, vai ver tem medo de cair no tapete e o senhor pisá-lo. Nem percebi, mas que bom, mesmo assim estou com a vista embaçada ainda. Tá, deixo ver na bolsa e pego meu colírio ao senhor, pronto, pegue o meu, use senhor. Obrigado então, vou tirar os óculos. E? Senhor, pode usar, não fique olhando para mim. É que sem os óculos minha vista se desembaçou, como é seu nome? Então me devolva o colírio. E você me devolva os óculos! Ah, cuidado com a pandemia. Que pandemia, isso é coisa de velho! Pois é, senhor!

Bem, depois de um bom tempo de balcão, duas atendentes que olhavam do distanciamento recomendado da Covid confabularam. Quem é esse senhor aí? É um que vem e fica falando sozinho, depois vai embora. Tá vendo? Ele conversava muito com aquela bonitinha que ficou doente. Nossa! Ele nem usa máscara, nem óculos, véio doido mesmo.

Que véio? Aquele de que lhe falei! Nossa, mas faz mais de mês que não o vejo, ele não morreu?

No toque de recolher a loja manteve as luzes acesas, vazia, com letreiros luminosos e fantasmas que passeavam na calçada e cruzavam sinaleiros de outros tempos e do além, tudo acessado remotamente.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente judiciário, escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi, dentre outros

 

 

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