Wanderlust

Fui a Minas, ontem, aqui em casa. Ainda era o domingo que começava e sempre acho que os domingos combinam muito com Minas. Seu café preto volatizando nosso olhar vago pelas montanhas breves – cheias de pedras e ferro –, sua manteiga sobre a mesa amolecendo a vida em merendas de pães de queijo e caseirinhos. Então, certo de ir a Minas, resoluto abri bem as janelas de casa, as portas da sala e da cozinha, e enquanto preparava a mesa do meu café Minas entrou como um sol no quintal. Sim. Talvez não tenha sido eu a ir a Minas, mas talvez ela é que tenha vindo até mim – o que, de fato, pouco importa.

Quando Minhas chegou, puxei de uma cadeira, abri com os dedos um pãozinho que eu acabara de descongelar e lambuzado de manteiga amei Minas, dentro dela e de mim, ali mesmo na cozinha, com um amor quase sensual e exageradamente libidinoso para um sagrado domingo de manhã. Depois, cigarro aceso na boca, falei a Minhas sobre meus amores por ela: Tiradentes. Mariana. Ouro Preto, São João. E Minas me mostrou aos meus olhos seus casarões antigos, suas ruas de pedra de rio, seus dobres de sineiros encantados, seus queijos, doces e cheiros depositados em baixelas de porta-retratos.

Moço, moço. À hora do almoço, Minas foi embora – ou fui eu embora dela. Mas São Sebastião já me esperava como um peixe enrolado em papel laminado dentro do forno. Fui a São Sebastião sem pedir licença. Talvez tenha chegado, mesmo, pelo mar – vindo por Caraguatatuba e passando pelo canal de Ilha Bela. Àquela hora do dia, São Sebastião estava linda como numa fotografia. O sol batendo nas ondas de seus mares até que me lembrava a luz da lâmpada da cozinha refletida na água da pia. Era ilusão, não era a minha pia – não! Era São Sebastião, com toda certeza. Eu reconheceria essa cidade a quilômetros de distância. Não tive dúvidas, aportei meu barco na ponta do escorredor de pratos. Abri do congelador uma cerveja bem gelada. O peixe exalava do forno a sua maresia, e me deixei ficar ali, cheio de praia, de coqueiros, ao som do mar e da vida, vivida, que me embalava.

Mais um pouquinho e cheguei a Paraty em tempo para uma cachaça Coqueiro. Ao meio da tarde, meus pés no quintal pisavam as ruas pés-de-moleque da cidade histórica. Zanzei por vielas de poesia, me esgueirando a todo momento de carroças puxadas por cavalos torturados a partirem meu coração. Quando dei por mim, já havia subido e descido até a praia de Jabaquara – e me vi sentado numa cadeira de plástico no boteco do Armando, bebericando outra caninha da terra no sempreterno “Capitania dos Copos.” Saí de Paraty em tempo de colocar o lixo na lixeira da rua de casa e chegar a Quatis para um café com cigarros na casa do meu amigo Rocco Caputo. Diante de seus quadros fenomenais dependurados na sala que parecia a de minha casa, conversamos entre um cigarro e outro sobre tudo o que nos vinha à mente. Falamos mal dos tempos de agora. Lamentamos o Brasil deteriorado pela política neofacista que nos quer impedir de viver e sonhar. Fizemos previsões sobre as próximas eleições aqui da cidade. Relembramos alguns filmes italianos. E encerramos o papo quando já era quase noite e se fazia minha a hora de retornar. Debaixo do meu braço, no entanto, trouxe comigo o desenho que dele adquiri e que agora embeleza outra parede de casa.

Fechei a janelas quando o arzinho frio da noite já se achegava. Voltei o desenho de Rocco na parede. Ajeitei os porta-retratos ao lado da televisão. Enxuguei os pratos da pia e os devolvi no armário da cozinha. No engradado de reciclados, as garrafas de cerveja e cachaça já descansavam prontas para seu destino. Arrumei a cama sem mesmo me lembrar de ligar a televisão – que dela não tive necessidade. Voltar de viagem é sempre nostálgico – e dá um trabalhão arrumar as coisas que trazemos delas. Por isso, deixei no chão do quarto a mala vazia por desfazer, sempre vazia por desfazer. Melhor assim. Melhor andar prevenido. Em épocas tão perigosas, em que sair de casa é proibido, viajar e rever os amigos requer sempre, sempre, muito mais cuidados.

 

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