Rafael Gonzaga de Macedo
Matheus Viccino
A Prefeitura da cidade de Piracicaba editou no dia 13/07/2020 o Decreto Municipal 18.349/2020, que basicamente proíbe o comércio de bebida alcoólica na cidade – em todas as suas modalidades – depois das 18 horas da tarde.
Talvez para os nossos concidadãos mais conservadores parece uma boa ideia, mas quando olhamos o histórico de práticas proibitivas numa perspectiva histórica, esse problema ganha um contorno diferente e bastante preocupante.
Em primeiro lugar, parece-nos que a prefeitura criou um subterfúgio para um de seus principais deveres: fiscalizar. Ao invés disso, porém, ela prefere punir o nosso comércio já combalido por uma crise que parece que ainda vai perdurar por alguns meses. Nesse sentido, vale dizer que o consumo de álcool não é o foco do problema, mas sim os estabelecimentos e empresários irresponsáveis, que sabemos não ser a maioria na nossa cidade. Dessa forma, parece evidente que a prefeitura ataca o paciente e não o sintoma.
Imaginem vocês os empresários que estão trabalhando seriamente e tentando manter seus negócios, ou mesmo os empregados que vendem sua força de trabalho a esses empresários e exercem a importante função de manter o comércio em nossa cidade. Serão eles os punidos pela falta de fiscalização da prefeitura?
Quem ganha e quem perde com esse decreto? Decerto, os perdedores não serão as grandes redes de mercados, que estão lucrando como nunca nessa crise, mas o pequeno e médio empresário local, bem como inúmeros trabalhadores envolvidos nesse comércio.
Ao mesmo tempo, quando olhamos a partir da nossa experiência histórica, percebemos que a ânsia proibicionista de substâncias invoca a mal fadada guerra às drogas, que alimenta não somente o próprio tráfico, como também o lucrativo mercado da morte: venda de armamentos, equipamentos de vigilância e o próprio medo que gera ainda mais recursos para esse mercado.
Durante muitos anos fomos iludidos pelo discurso da morte de que as algumas substâncias devem ser proibidas enquanto outras podem ser comercializadas. Nesse ínterim, criamos uma guerra em que pessoas pobres, que se tornam policiais, lutam e matam outras pessoas pobres, em sua grande maioria negra, que vendem substâncias não regulamentadas. Essa guerra tem funcionado? Pergunto de forma honesta aos leitores.
Não é o caso de levantar a bandeira de coveiro e tratar de qual droga mata mais ou menos. Sobre esse caso, vale trazer para a reflexão o combate ao tabagismo feito por meio de propaganda e educação, que diminuiu drasticamente o consumo de cigarros em menos de uma década. Não seria esse o tipo de “guerra” que deveríamos travar em uma sociedade já bastante violenta?
Além disso, a ânsia proibicionista de substâncias traz uma incomoda questão: o racismo estrutural da nossa sociedade. No início do século XX o Brasil teve um importante papel na proibição da maconha, por exemplo. E qual era o argumento? De que essa substância havia sido introduzida em nosso país pelos escravizados africanos, que segundo o médico que produziu o relatório apresentado no Segundo Congresso Científico Pan-americano, realizado nos Estados Unidos em 1915, agiam conscientemente para sabotar o desenvolvimento do nosso país.
Ora, vejam só! Desde o século XVI, os escravizados africanos foram determinantes para a construção dessa nação, carregando em seus braços, a produção de açúcar e o enriquecimento de uma minoria de senhores brancos.
No entanto, no final do século XIX, com as teorias racialistas, que defendiam, entre outras coisas, o branqueamento do Brasil como uma saída para o desenvolvimento do país, transformaram o elemento negro da nossa sociedade em um vilão. E a maconha, pasmem, foi considerada o instrumento pelo qual o Brasil era atacado pelos descendentes dos escravizados africanos.
Ao invés de atacar a desigualdade social decorrentes de uma sociedade escravagista, os doutores da época culparam a raça negra pelo nosso não desenvolvimento, culparam também a maconha e assim defendiam a proibição da mesma. Cem anos depois, mutatis mutandis, os doutores de agora continuam criando desculpas, atacando o paciente e não a doença.
A proibição do comércio de álcool não irá atacar o pior problema: a falta de consciência das pessoas na necessidade do isolamento social, também poupa a prefeitura de ter que fazer o que deve ser feito: fiscalizar, fiscalizar e fiscalizar. E quem sai perdendo com isso? Os grandes empresários? Não, mas o comércio local, já combalido e entubado.
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Rafael Gonzaga de Macedo, historiador, membro fundador do Coletivo Oswaldo Cruz; Matheus Viccino, empresário e ativista antiproibicionista