Jose Renato Nalini
Acredito cada vez mais na tese sustentada pelo francês Jean Cruet, que escreveu “A vida do direito e a inutilidade das leis”, cujo subtítulo autoexplicativo é: “Sempre se viu a sociedade modificar a lei; nunca se viu a lei modificar a sociedade”.
A verdade contida nisso está escancarada no combate à criminalidade. Todas as leis costumam trazer “jabutis”, ou seja, incluem mais um tipo penal à infinita coleção de infrações normatizadas. Como se tornar por lei uma conduta antes irrelevante como ação delitiva, fosse coibir sua prática. Vê-se que assim não é.
A parca imaginação da comunidade jurídica mantém a visão arcaica de considerar a prisão a única resposta para a delinquência. Com isso, já somos o terceiro país que mais encarcera e, como somos fanáticos por rankings, logo vamos chegar ao topo. Assim como nada indica deixemos de superar os Estados Unidos em número de infectados e vítimas fatais do Covid19. O que interessa é estar no pódio!
A experiência adquirida em décadas de Justiça criminal, seja na primeira instância, depois na Segunda Instância, atuando junto à 2ª Câmara Criminal do TJSP e nos dez anos em que permaneci no saudoso extinto TACRIM – o melhor tribunal que o Brasil já teve – mostrou que o crime é um fato jovem. Sua prática ocorre entre os 15 e os 24 anos. É ínfima a percentagem de práticas delitivas fora dessa faixa.
Contudo, para todas as práticas delinquenciais, oferece-se idêntica resposta: a prisão. Esta nunca foi pena principal, no decorrer da História do Direito Penitenciário. Prendia-se para viabilizar a execução. O condenado podia fugir e então ordenava-se o seu encarceramento.
Percebeu-se que trancafiar uma pessoa podia ser pior do que mata-la. O presídio passou a ser a pena principal. E converteu-se na única.
Isso alimentou a “indústria do cárcere”. Há governantes que se orgulham de acréscimo do número de vagas carcerárias. Investiu-se na indústria do presídio, com suas edificações, a manutenção com o fornecimento das “quentinhas”, dos colchões, dos equipamentos de segurança. Fortalecem-se as carreiras que subsistem da política prisional. Fornece-se incremento a quem subsiste mediante o transporte das famílias até os presídios, do comércio que se desenvolve nas imediações, numa vasta cadeia que leva alguns prefeitos a pedirem cadeias em seus municípios, para oferecer postos de trabalho a seus cidadãos.
Tudo isso é retroalimentado por uma cultura da punição exemplar. Divide-se o mundo entre o desgraçado que delinquiu e o inocente que é sua vítima. Impulsionada por essa concepção e em pânico porque a insegurança é uma sensação que terrifica e elimina qualquer lampejo racional na consciência popular, a cidadania reclama por maior rigor ainda. Crimes hediondos, penas mais severas, redução da maioridade penal. Se houvesse uma enquete nacional, não se duvide de que a pena de morte sairia vencedora, assim como a pena perpétua e a aplicação de chibatadas.
Valendo-se de tal tendência, o governo estimula o armamento da população. Mais armas, mais munição, maior flexibilidade para possuir, portar e usar esse instrumento que existe para tirar a vida.
A tragédia é que o combate dos efeitos não surte resultados. As causas continuam aí, a desafiar o que resta de lucidez à República.
Por que os jovens preferem a via infracional à licitude?
São inúmeras as causas. Sem a pretensão de exauri-las, nem de ser o detentor do monopólio da verdade, arrisco adentrar a esse terreno pantanoso.
Não há educação de qualidade, hábil a reduzir a escandalosa diferença entre ricos e pobres, entre incluídos e excluídos, entre beneficiários do produto neoliberal e os invisíveis. Estes se converteram no espectro real e assustador depois da Covid19. São milhões ignorados pelo sistema.
A escola continua a praxe de transmitir conhecimento ultrapassado e parece ignorar que a Quarta Revolução Industrial produziu mutação profunda em tudo. O Brasil tem 265 milhões de mobiles e 210 milhões de habitantes. Sabe-se, a qualquer instante, do que se passa no planeta.
A publicidade apregoa a imprescindibilidade de bens da vida que só podem ser obtidos mediante recursos financeiros que são indisponíveis à maioria. A juventude não tem espaço para o desenvolvimento saudável de suas potencialidades. O ensino é decoreba, não investe nas competências socioemocionais.
O jovem que não se submete ao esquema e que vê seu limite de possibilidades muito reduzido, é alvo fácil de uma facção que enxerga o que o Estado parece ignorar. Recrutado para o tráfico, tem tudo aquilo que a sociedade da licitude mostra ser essencial: liderança, conquista do sexo oposto, respeito, acesso aos bens vitais sem os quais não se goza a existência.
Vulnerável, é primeiro chamado a consumir drogas. Depois a traficar, para saldar seu débito. Quando ingressa no sistema carcerário, a organização criminosa cuida de seus interesses. Dentro e fora do presídio. Investe em sua preparação. Ele sai pós-graduado. E ressentido com o sistema que o prendeu.
Não são os menos providos de aptidões e de talento os encarcerados. Ousaria dizer que é o contrário. São presas preferenciais os que enxergam longe e não vislumbram, no atual estado de coisas, perspectiva para a conquista daquilo que a sociedade considera fundamental a uma boa vida.
A prisão é um mal. Não há nada de bom nela. Mas cuidar da infância e da juventude para que ela sobreviva sem delinquir custa muito empenho. Não faltam recursos financeiros para a educação. Mas a mentalidade anacrônica e anquilosada não chega a extrair o proveito desse investimento.
A retribuição pela prática delitiva precisaria evitar a prisão, reservando-a para casos excepcionalíssimos. Tudo o mais mereceria outra resposta do sistema. O exemplo dos crimes antigamente chamados de “colarinho branco” é eloquente. De que adianta oferecer às multidões o espetáculo deprimente de alguém algemado ingressando no presídio, se o resultado econômico da infração fica resguardado para uso oportuno?
Para esses, a maior penitência seria a econômica. É só essa a linguagem que alguns brasileiros conhecem.
Para outros delitos, há tanta possibilidade de castigar, sem o sacrifício da liberdade e, mais ainda, da própria dignidade. Nossos presídios são indecentes. São fábricas produtoras de monstros. Não dá para perceber isso? A quem está servindo essa estratégia? Somos o terceiro maior contingente de presidiários e, em virtude disso, usufruímos da terceira posição em segurança coletiva?
Quando é que a racionalidade vai voltar a fazer parte do nosso cardápio?
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José Renato Nalini, Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela USP, foi magistrado durante 40 anos e presidiu o extinto Tacrim – Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo; presidente da Academia Paulista de Letras (APL)