Camilo Irineu Quartarollo
No tráfego chuvoso da rua indeterminada e quase sem saída via-se à margem um viveiro de pobres sob um pontilhão. Escondia-me no carro em fila do sinaleiro, mas qual um sinal de Deus bateu-me contra a vidraça do meu para-brisas no trânsito de uma manhã tímida de corona vírus. Como estender a mão sem se infectar? Quem ou o que vinha lá meu Deus! Nunca vi nada igual, tão horrendo a gesticular. Ia me atacar, quebrar o limpador? Seria uma pomba enorme, um pássaro agitado do outro lado?
O quê?
Desviei o olhar várias vezes fingindo naturalidade às desgraças do percalço, mas a coisa me olhava dentro dos olhos, me fazia sinais, e não me deixava seguir no meu caminho dentro do carro quente. Atentei mais os olhos, dilatei as pupilas sem os óculos embaçados no banco de passageiro e vistas cansadas.
Ah, era um maltrapilho, não, era mulher, uma prostituta, e já cedo! Não, era… claro, nem maltrapilho, nem prostituta, era um transexual ou homossexual. Que preconceito meu! Era um artista de rua, com certeza, gente inofensiva. Não, não era, pois tinha escoriações no rosto, apanhava de polícia, era gente da rua mesma que pareciam passarinhos. Não era bem isso. Era…
Por fim, para conferir mesmo quem ou o que era, encorajei-me e estendi a mão com assombro oferecendo algo. Veio fatigado (a) mas feliz, deitei-lhe uma simples moeda que sobrou do supermercado, fazendo o vulto se aproximar para ver quem era a figura. Ele, ou ela, era… um ser humano como eu! Que me sentia mais uma figura naquele tráfego monstro. O monstro somos nós, afinal.
Foi tudo tão rápido, nem sei como baixei e subi o vidro do carro para evitar o corona, só sei que me encontro aqui neste hospital e disseram que bateram na traseira do meu carro enquanto eu segurava o tráfego. Alguém disse que eu não tirava os olhos da frente do volante, falando sozinho.
De tudo me resta a dúvida: onde eu perdi aquela moeda…
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros