A morte à frente dos nossos olhos. Mas não lemos.

Adolpho Queiroz

 

Em meio à pandemia, leitor atento dos nossos jornais diários, que publicam invariavelmente problemas maiores ou menores da administração pública local, suas contradições, promessas e justificativas, há uma página ou sessão muito objetiva, que tenho tentado ler com cuidado.

Na página dos necrológios, varias de mortes que são anunciadas ao público quase que diariamente. A Tribuna, de 21 de maio, anunciou nove mortes ocorridas em dias anteriores, ocupando meia página, da A10 daquele dia, igualmente publicada em seu site. Na edição que veiculou em 1 de junho, o semanário Piracicaba Hoje trouxe uma página inteira com notícias de falecimentos, anunciando 16 ocorrências. A edição de 27 de maio do Jornal de Piracicaba, com uma página e meia, trouxe 45 notícias de pessoas falecidas em dias anteriores; a Gazeta de Piracicaba, também na sua edição de 27 de maio, anunciou a morte de 48 pessoas, usando uma página e meia.

O último acesso que tive sobre as mortes por Covid antes dessa segunda feira, dia 1 de junho, quando escrevo este artigo, é de que tinham sido vitimadas pela pandemia, 29 pessoas ao longo de 75 dias em nossa cidade.  Contra 48 e 45 em dois ou três dias de maio, conforme noticiaram nossos jornais.

Não houve, para a maioria dos falecimentos, repulsas, dor, manifestações públicas de afeto ou desafeto. Apenas o olhar complacente das autoridades locais – de A a Z, sem exceção – para as rotinas da nossa cidade. Elas estão bem visíveis nas páginas dos nossos jornais.

Entidades civis, médicos, advogados, ativistas políticos, religiosos, nem um suspiro pelos nossos mortos. E uma algazarra paranoica sobre os demais. Isso está acontecendo na nossa – nas nossas cidades – diariamente, há 75 dias, apesar da insistência de algumas autoridades públicas e da própria imprensa local-nacional-regional, amplificar destaques para as ocorrências da pandemia e os desesperos e desconfortos decorrentes.

Mas cheguem, amigos leitores, por favor, às páginas dos nossos obituários. Destaques nestes dias apenas para o falecimento de um médico e de dois ex jogadores do nosso XV de Novembro. Provavelmente entre as mortes anunciadas, estão embutidos os números dos falecidos pelo vírus chinês.

Quem ganha com a exploração dos sentimentos da nossa sociedade nesse momento tresloucado? Quantos empregos suprimidos nestes dias? Um dos nossos jornais anunciou em primeira página dia desses o fechamento de mil pontos comerciais na região central da cidade como sendo um entrave para que os agentes de saúde entrem nos imóveis para imobilizar o outro adversário, a dengue. Para evitar a dengue, podemos arrombar as portas. Para evitar o Coronavírus temos que andar em ônibus superlotados, usar máscaras e continuar enfurnados em casa até que a paz possa ser anunciada por decretos municipal, estadual e federal, com o esperado “todos livres, acabou…”

Ao convidá-los a partilhar destas informações não sei o que é possível aconselhar aos leitores destas notas. Calem-se ou berrem… Mas, acostumado às batalhas jornalísticas da minha terra, há anos, volto a sugerir-lhes. Leiam diariamente e confirmem nas nossas páginas de obituários. Confortem-se também pelas perdas que temos por doenças do coração, câncer, acidentes, roubos, assaltos, etc.

A sensação que tenho, após tudo isso, é a de que estou sendo vítima de um grande engodo. E de uma carga, além da conta, de pressão psicológica. A essa altura, a meu juízo, toda essa situação poderia ter sido evitada se não nos agarrássemos à mentilorogia paranoica destes dias.

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Adolpho Queiroz, publicitário, jornalista, do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba (IHGP), um dos idealizadores do Salão Internacional de Humor de Piracicaba (SIHP)

 

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