A ética protestante e o Espírito de Jesus Cristo

Nilson Silva Junior

 

Certa vez, quando adolescente, enquanto aguardava o ônibus, fui surpreendido por uma senhora que indagou se eu era evangélico. Depois que tomei o coletivo, pensei na razão daquela abordagem. Como percebeu? Imaginei que talvez fosse pelo meu jeito, o corte de cabelo, a roupa, enfim. Naquele tempo acontecia isso, os evangélicos eram reconhecidos de longe. Tinham modéstia, seriedade, que não se confundia facilmente. Quando se necessitava de uma pessoa honesta, naturalmente, era lembrado. Havia postura, conduta, que se destacava. O tempo passou e a exemplo dos EUA, forte influência do protestantismo brasileiro, o evangélico se transformou em “gospel”. A música se alterou, saíram os conjuntos vocais, entraram as “bandas”, as roupas, este modo de ser se perdeu. Com o surgimento do neopentecostalismo, nasce a doutrina do capitalismo gospel, onde espiritualidade e dinheiro se confundem, a ambição toma conta dos cultos, o empreendedorismo se embaraça com a crença e a ética protestante é radicalmente alterada.

Por ética, podemos entender o comportamento, o costume, a característica. É exatamente aí que vemos a transformação do evangélico brasileiro em crente ambicioso. Vivemos tempos de relativismo. Grande parte do protestantismo brasileiro subverteu a ética cristã, nesse novo jeito de ser, dane-se o procedimento, a educação, o modus operandi, o que importa é o resultado. A prosperidade financeira é o maior sinal de Deus. A fé é medida por marca de carro, endereço e conta bancária. O bom crente é aquele que tem. Quem é pobre e necessitado está em pecado, em desobediência. É uma espiritualidade de mercado, econômica, capitalista e predatória. Os “servos” de Deus são vencedores, dominadores, com direito de exterminar tudo o que estiver a frente e atrapalhar seus propósitos e usam como mote a Bíblia dizendo “Deus nos colocou por cabeça e não por cauda”, alusão ao texto de Deuteronômio 28.13. Os testemunhos se expressam pela obtenção de bens, quanto mais se adquire, maior a benção. Esse povo luta muito, exaustivamente, trabalha dia e noite, acreditando que Deus lhe dará riqueza e quando isso não acontece, normalmente, o insucesso é sempre causa de algum infortúnio ou maldição, do pecado do pastor, da igreja que frequenta.

É assim que percebo o evangélico contemporâneo, claro, com exceções, praticante da liturgia do próprio umbigo, voltado aos próprios prazeres, adorando a si mesmo como verdadeiro e único senhor. Por isso, demonstrações de extremo descaso com o próximo, com a natureza, com a vida. Hoje em dia eles são armamentistas, vivendo um estranho evangelho de bíblia na mão e revolver na cinta, são violentos, arrogantes, bocudos, respondões, ameaçadores, partidários, dão bandeiradas em repórteres, xingam, falam palavrões e acham bonito quem os tenha comumente em seu vocabulário, sentem-se em guerra o tempo todo e qualquer questionamento é sistematicamente considerado ameaça do “inimigo” e afronta a Deus. Aplaudem falta de educação, truculência, desrespeito por mulheres, acham normal alguém dizer que não se casa com mulher negra porque tem boa formação. Enaltecem e glorificam pessoas que ofendem desmedidamente o próximo, que se omitem diante do luto dos outros, que riem da desgraça alheia. É uma gente sarcástica, arrogante, que aprendeu a debochar do sofrimento alheio, que faz chacota da dor que não é sua. Que trata pobre como vagabundo e não se preocupa nada em ser cortês e tratável.

Como colocar esse tipo de pessoa ao lado de Cristo? Como considerá-lo seguidor do verdadeiro Messias? Quando olhamos para o Jesus de Nazaré, vemos um homem simples, muito preocupado com a injustiça social, ajudante de miseráveis, sensível à dor de mães que perdiam seus filhos, de aleijados que se arrastavam pelas margens da sociedade, ofendido pelo julgamento hipócrita de religiosos surpreendendo mulheres em adultério sem dar o mesmo tratamento aos homens. Jesus combateu fortemente os desmandos dos políticos que “atavam fardos pesados e colocavam sobre os ombros” do povo (Mateus 23.4). Se preocupou com as pessoas, alimentou famintos, matou a sede de sedentos, trabalhou o tempo todo pela preservação da vida, do direito, chorou pela morte de Lázaro, não foi insensível ao luto de suas irmãs que sofriam a perda de um ente tão querido. Se misturou com os desvalidos. Nos tempos de hoje, Jesus seria aquele assistente social insistindo pela sobrevivência da dignidade no meio das favelas, dos sem teto, dos sem esperança.

Se Jesus entrasse num dos grandes templos da atualidade e tivesse ali direito à palavra, certamente, seria excluído, rechaçado, julgado e sentenciado por aqueles que ironicamente se dizem cristãos. Não consigo conceber um Cristo preocupado em ter, em ser, em dominar. Consigo, sim, percebê-lo contestador, tentando abrir os olhos dos que caminhavam cegos em uma religiosidade equivocada. Jamais imaginaria Jesus buscando riqueza financeira, mas, provavelmente, Ele seria aquele que ofereceria um pedaço de pão a alguém que dorme no frio das ruas de uma grande cidade. A ética do Jesus Cristo bíblico, andarilho da Palestina, operador de milagres, não é a mesma dessa parte expressiva dos protestantes brasileiros de hoje. Arriscaria dizer que Ele não tem nada a ver com o que se fala e professa atualmente em seu nome. A conduta, a postura, os interesses e motivações são radicalmente contrários. Tenho a impressão que Jesus nem seria aceito na maior parte das comunidades evangélicas modernas, seria taxado de esquerdista, apoiador de ladrões e comunista (no mal sentido da palavra). Sua pregação não apeteceria quase ninguém. Poucos o seguiriam.

Quando Max Weber escreveu a “Ética protestante e o espírito do capitalismo”, relatou a percepção de uma sociedade que, a partir de seu proceder religioso, impulsionou o desenvolvimento dos EUA. Fico pensando onde chegaremos como nação com essa “conduta religiosa” que vemos nas palavras e nas manifestações dessa parcela do protestantismo que reivindica, através de apoio político de instituições e até de pastores que declaram o presidente como profeta, a fundamentação religiosa do governo presente. Se é que teremos um país governado por uma “filosofia evangélica”, quais características terá? Seremos uma sociedade humanitária? Solidária? Seremos justos, injustos, exclusivistas, seletivos? Teremos atenção com os fracos ou só com os fortes? Teremos ouvidos para o contraditório ou somente para os concordantes? Seremos uma nação de justiça, paz e alegria (Rm 14.16) ou de diferenças, guerras e tristezas? Como o protestantismo brasileiro será lembrado depois desse governo?

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Rev. Nilson da Silva Júnior, pastor, professor; [email protected]

 

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