Dorgival Henrique
Paulo Roberto Botão
A pandemia que estamos vivendo coloca na ordem do dia várias pautas que necessitam ser revisitadas e reformadas, sendo que uma é essencial para garantir a nossa sobrevivência com dignidade: como o cidadão consegue construir sua cidadania, num espaço em que seus desejos e necessidades só serão atendidos se tiverem o consentimento do chamado poder local.
Precisamos criar nos municípios uma cultura em que os cidadãos possam propugnar e se transformarem em sujeitos históricos da sua autotransformação econômica, social e cultural, assim como das próprias cidades onde vivem. Com isso poderão dialogar com os prefeitos, vereadores e autoridades constituídas, participarem da gestão pública de suas respectivas cidades e assumirem a corresponsabilidade deste patrimônio coletivo.
Na medida em que surjam, nos municípios, espaços que permitam a criação de equilíbrios necessários para a manutenção e o florescimento da vida será possível contrapor os espaços de mortes existentes no país.
São valores que se sustentam centralizados nas mãos de oligarquias obscurantistas, baseados ainda m paradigma colonial Casa Grande e Senzala, e se mostram incapazes de dar respostas aos desafios que nos estão colocados. Denunciar concretamente estes valores e seus efeitos danosos é prioridade se quisermos preservar a vida.
Neste contexto, foi com grande pesar que assistimos em Piracicaba, na última semana, iniciativas de segmentos do poder local para driblarem a legalidade inédita que vivemos hoje, em função do vírus da morte que não escolhe classe social, cor da pele, idade e orientação sexual.
A partir de uma iniciativa, no mínimo estranha porque absolutamente questionável do ponto de vista legal e de sua eficácia, a Câmara de Vereadores aprovou, a toque de caixa, com apenas um único e corajoso voto contrário, a Emenda da Lei Orgânica n.25, de 19 de maio de 2020, com o objetivo de dar mais autonomia ao poder Executivo no enfrentamento da pandemia.
Diante de um cenário econômico desesperador tanto para empregados como empregadores, criou-se a ilusão de que a volta da normalidade será o remédio a curto e médio prazos para combater a Covid-19. Esta parece ser a avaliação que leva à apresentação e aprovação da emenda, felizmente já questionada judicialmente, pois parece claramente inconstitucional.
Sabendo-se da inexistência de vacinas ou remédios efetivos para combater o coronavírus, argumenta-se que as ações governamentais de âmbito municipal e estadual têm se limitado, como único caminho, ao isolamento social.
Além disso, para reforçar a posição dos que anseiam a abertura do denominado comércio não essencial não faltam comparações esdrúxulas, realizadas pelo governo federal, que envolvem países desenvolvidos, com ampla rede de saúde e de equipamentos hospitalares e com uma população menor do que a da cidade de São Paulo.
Busca-se, de forma atabalhoada e a qualquer custo, amparo legal para a flexibilização do comércio local não essencial, mesmo que essa ação, no momento, confronte o princípio da isonomia inserido em nossa Constituição Federal.
Alega-se que o fechamento das atividades econômicas, como o único remédio para tentar impedir a circulação das pessoas, levará à mortalidade de empresas e ao aumento exponencial do desemprego.
É sintomático que esse processo de mortalidade das empresas e dos empregos, essa tendência entrópica do sistema não tenha sido pensado pelo poder local com criatividade, coragem e reponsabilidade, virtudes necessárias para o enfrentamento da atual conjuntura pandêmica.
Focar só na flexibilização da lei permitindo a reabertura dos negócios, como se fosse possível voltar ao passado recente, mesmo com o risco de aumento de contaminação e mortes, é tentar sobreviver amanhã para morrer depois de amanhã.
Esse caminho não é estranho, mas de fôlego curto, pois enseja que o futuro seja construído com a lógica do presente que continuará aprisionado. A quem interessa percorrer esse caminho?
Por que nossas autoridades dos poderes executivo, legislativo e judiciário, lideranças empresariais, sindicais e políticas, não buscam o caminho da vida?
Por que a Acipi, o CDL e outras entidades congêneres não articulam, com setores organizados da sociedade civil, uma ampla defesa dos empreendedores, industriais, comerciantes, comerciários e empregados?
Uma frente com este propósito poderia exigir que os empréstimos anunciados pelo governo às empresas médias, pequenas e microempreendedores cheguem de fato aos que precisam, o que até agora não está acontecendo. Não é possível mais se ficar refém dos discursos de que não se concretizam por falta de vontade política.
A propalada liberação de recursos pelo governo federal não significa sua liberação aos que pleiteiam, pois a gestão destes recursos ficou sob a custódia dos bancos e de sua lógica estruturada para a garantia do sistema e se deus lucros.
Esses empréstimos, no contexto da vigência da pandemia, para salvar empresas e empregos, deveriam ficar por conta do governo federal, pois constituem um necessário socorro do Estado brasileiro às empresas e em última instância à sobrevivência das pessoas.
“As dificuldades impostas por Paulo Guedes, tanto aos estados quanto às empresas são recorrentes, que se fica sem saber se é questão de incompetência ou de boicote”, escreveu o jornalista econômico Luis Nassif em texto recente.
O momento exige a construção de um novo pacto social, em defesa da vida e dos negócios. Piracicaba merece uma articulação propositiva e inclusiva, na qual caibam todas as pessoas e da qual se excluam os projetos mesquinhos, demagógicos ou eleitoreiros.
É urgente que as lideranças da cidade, de todos os segmentos, sejam chamadas a dialogar e pensar, coletivamente, alternativas que tenham como valor máximo a proteção da vida.
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Dorgival Henrique, professor universitário, ex-diretor da FGN/Unimep.
Paulo Roberto Botão, jornalista, mestre em comunicação social e professor universitário.