Intermezzo

Cecílio Elias Netto

 

O sr. Jair Bolsonaro declarou-se, recentemente, um “homem tosco”. Se assim o disse, assim o seja. Pois, isso explica quase tudo. Ora, segundo os dicionários – pelo menos, Larousse, Houaiss e Aurélio – a pessoa tosca é “grosseira, mal feita, rude, rústica, inculta, bronca, não lapidada e nem polida, dissoluta, vil, abrutalhada, reles, tal como veio da natureza”.  Assim o sr. Bolsonaro se define a si próprio. E é impossível, pois, não se alarmar com alguém, com tais atributos, ocupando a Presidência da República.

O que me perturba – em tempos de tanta dor e sofrimento – é saber que um homem tosco não reage, não se sensibiliza, não se suscetibiliza. Mas, também, conforta-me. Pois descubro não ser, eu, um homem tosco já que – como milhões de outros seres humanos – sofro, amarguro-me, angustio-me com essa nossa tragédia universal. E isso dói, machuca, ao perigo de chegar-se à depressão. Mas o que é a depressão senão a alma ferida do humano apenas humano? Os brutos não se deprimem.

Pois bem. Vivendo essas noites mal dormidas, esses dias tormentosos, eis que procurei, na televisão, algo que me impedisse o desalento. E esbarrei num programa que alinhavava os “ícones do esporte do Século XX”. E a primeira referência era Pelé. Apaixonado por esportes – e, em especial, pelo futebol – animei-me a ver o programa. E lá estava ele, Pelé, o inigualável Pelé, o Pelé que, ao mesmo tempo, me deu, pessoalmente, tantas alegrias e amarguras. Amarguras, por Pelé ter humilhado o meu Corinthians ao longo de 20 anos. Mas alegrias, riquezas sem conto. E um honroso privilégio: vi Pelé jogar ainda em Bauru, garoto também conhecido como “Gasolina”.

Emocionei-me, comecei a lembrar-me de tudo. Daquele domingo, em Bauru, quando um amigo, o Antônio Carlos, levou-me para ver jogar – no infanto-juvenil do BAC (Bauru Atlético Clube), o “Baquinho” – o garoto mágico. Não acreditei no que estava vendo. E falei que “Pelé jogava quase igual ao meu amigo Pachequinho (dr. Fernando Pacheco)”, craque do XV daqui…  Quase igual…

Ao retornar das férias, insisti para o pessoal do XV ir a Bauru contratar o garoto Pelé, ora vejam!  E, uns dois anos depois, o então presidente do Santos, Modesto Roma, em entrevista ao semanário “Mundo Esportivo” – influente jornal da época – contrariou os que diziam ser, o húngaro Ferenc Puskas, o melhor jogador do mundo. “O melhor está em Santos, tem 16 anos. Seu nome é Pelé!” Abobalhei-me.

Animado com o documentário sobre Pelé, dei-me conta, aos poucos, do inevitável dessa amargura, dessa angústia tanta. Está óbvio: minha geração não consegue suportar a mediocridade que se soma ao vírus assassino. Assim, recorrendo ao poeta, posso dizer: “Meninos, eu vi!” Eu vi Pelé, Maria Esther Bueno, Eder Jofre; vi o nascer da Bossa Nova, a estreia de Elis, de Chico, de Vinicius; vi a construção de Brasília; vi o Brasil confiante e esperançoso de Juscelino; vi a epopeia de o homem chegar à Lua; Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughn; Cassius Clay (Muhamed Ali); vi o XV ser o primeiro campeão do interior; vi Vlamir, Pecente, Paula Motta e vi Heleninha, Maria Helena, Paula, Hortência; vi o golpe civil-militar tornar-se ditadura militar. E vi um povo corajoso ir às ruas exigindo liberdade e democracia.

Vi por estar vivo, por ter vivido aquela época gloriosa. Logo, não me é, realmente, possível suportar esses tempos tão semelhantes ao que S. Exa. se definiu: tempos toscos. Por uma noite, vivi um “intermezzo” vivificante. E orei para o meu país despertar de “seu berço esplêndido”.

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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana ([email protected])

 

 

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