Alexandre Bragion
Gregor Samsa acordou sobressaltado como toda manhã. Seus sonos intranquilos se tornaram costumeiros. Desde que virou um inseto asqueroso, numa desses despertares de solidão e espanto, Gregor não mais saíra do quarto. Seu aspecto nojento, vermoso, suas pernas metamorfoseadas em patas peludas, seu corpo gordo e cascudo e sua cabeça adornada por duas antenas o impediam de enfrentar a vida cotidiana. Mas, nesta manhã, e novamente após novos sonhos tempestuosos, Gregor sentia por debaixo dos lençóis que alguma coisa ainda mais abjeta o assolara.
De repente, ao se mexer, Gregor sentiu um peso de ossos e carnes ao qual não estava mais acostumado. Inesperadamente, percebeu que poderia mexer os dedos dos pés com a mesma facilidade de quando era humano. Incrédulo, Gregor notou estupefato que – por algum motivo – ele havia voltado a ter dedos, pernas e pés no lugar de patas. Temeroso do que poderia encontrar debaixo das cobertas, Gregor Samsa permaneceu imóvel por algum tempo. Seria possível? Uma desmetamorfose justamente agora em que ele ouvia dizer que as coisas pareciam muito piores fora do quarto e da casa? Sem entender muito bem seu estado, Gregor fechou os olhos literalmente desbaratado. Talvez se voltasse a dormir tudo poderia tornar ao seu devido lugar assim que acordasse. Mas Gregor já não podia mais dormir.
Num ato impulsivo, sentou-se na cama. De fato, já não era mais o inseto asqueroso de antes. Suas mãos dispunham-se quase que involuntariamente a tocar em todas as coisas. A bem dizer, seu corpo todo se agitava num frêmito de pura desesperança e tristeza. O que diriam a ele agora? O que seus pais e sua irmã cobrariam dele, uma vez que poderia encarar a vida lá fora como os demais? Seus pés frios e nodosos tocaram o chão do quarto. Seu corpo nu, apenas enrolado num lençol pendente, elevou-se em pé como uma dessas ridículas e bregas réplicas da Estátua da Liberdade espalhadas por algumas lojas do comércio. Seria realmente possível? No espelho do quarto o rosto de Gregor estampava sua desgraça: Gregor não era mais um inseto nojento, Gregor voltara a ser – novamente – humano.
Pela janela do quarto, Gregor Samsa avistou a vida na urbe: um turbilhão de pessoas apressadas, trombando umas nas outras, dançava um caótico e grotesco balé sem sentido e corria em busca de uma ilusão idiota qualquer. Percebendo que não havia mais ninguém em casa, Gregor abriu a porta de seu quarto apenas o suficiente para pegar o jornal do dia, que o pai sempre deixava por ali, e trancou-se de novo. Ainda nu, mas já sem o lençol sobre as partes pudendas, ele se sentou em sua cama e correu os olhos pelas notícias do dia. Uma sensação de náusea o acometeu violentamente. Desantenado que estava, Gregor não conseguia captar o que estava acontecendo. Um misto de ânsia de vômito e desejo de morte o invadiu. Pensou em usar algum inseticida forte para por fim à vida imediatamente. Mas já não era mais um inseto. Sua situação havia, de fato, piorado muito.
Ainda sem conseguir acreditar no fim de sua sorte, Gregor Samsa continuou a ler o jornal sem entender muito bem o que havia acontecido. Estava, agora, lendo em português – e misteriosamente, pelo jeito, acordara no Brasil! Não seria possível! Kafta (ou seria Kafka?) devia mesmo estar tendo terríveis alucinações para imaginar algo assim! Além disso, tudo no Brasil lhe parecia tão diferente do que ele imaginava, tudo parecia tão absolutamente insólito e tremendamente absurdo. E seus olhos liam desarvorados: alta da carne, alta do dólar, ministro da educação analfabeto, secretária da cultura dizendo que pum é cultura, presidente dando bananas à imprensa e à nação, PIB cada vez menor, ataques às escolas e universidades, cortes no orçamento básico do país, máfias no poder, milícias, descaso, ameaças, ofensas, inépcias de toda ordem, cristãos fazendo apologia às armas e à violência, invasões de reservas indígenas, mortes, perseguições, queimadas, violência, entrega de bases militares aos americanos…
Gregor sentiu uma profunda saudade de seu estado anterior. Como era bom poder ser um inseto asqueroso trancado em seu próprio quarto num canto esquecido da Europa. Como era mais digno viver como uma barata sobre uma cama qualquer a ter de se misturar à imundície dos dias atuais por aqui. Que Kafka (ou Kafta?) o devolvesse à tranquilidade de antes – isso, sim! Sem querer saber mais sobre o Brasil, Gregor colocou cuidadosamente o jornal no lugar de sempre. Então, como se nada tivesse acontecido, retornou à cama e se enfiou novamente debaixo dos lençóis. O mundo lá fora era nojento demais para ele.
De olhos fechados, Gregor Samsa desejou novamente poder voltar a sonhar seus sonhos intranquilos de antes – e adormeceu não sem algum esforço, por fim, implorando aos deuses (ou a qualquer escritor ou cronista) que lhe dessem uma nova metamorfose capaz de devolver a ele a dignidade perdida.
Alexandre Bragion é editor do site Diário do Engenho.