Mau sacerdote, levita ingênuo e o bom samaritano

Camilo Irineu Quartarollo

 

O sacerdote nos tempos bíblicos era médico, fazia curas com ervas, prescrevia cuidados, avaliava os tipos de lepra pelo aspecto da pele ou pelos, decretava o confinamento do doente e alguns hão de lembrar do “vão se mostrar aos sacerdotes no templo” dito por Jesus aos dez leprosos.

No templo de Jerusalém havia muitos sacerdotes, assim como levitas, estes mais dedicados à música sacra, os sacerdotes cuidando do fogo sagrado e dos sacrifícios de animais cujos corpos não enchem “nem a cova de um dente de Deus” (expressão de Saramago). Aquele templo recebia milhares de peregrinos nas festas anuais, de todo o mundo.

Servir como sacerdote num templo como o de Jerusalém dava muito prestígio, era como ser vereador ou deputado, dava muito status e um caminho de se chegar à nobreza, ter uma vida estável e passar à prole um nome.

Os peregrinos evitavam o caminho de Samaria, onde havia um templo também, não belo como o de Jerusalém, mas grande. Os galileus desciam beirando o rio Jordão e evitavam Samaria, pulavam pelo vau a hoje conhecida Jordânia até chegar a Jericó, dali subiam quase mil metros, passando o rio Jordão novamente e chegando à Jerusalém. Muitos sacerdotes que serviam no templo moravam na cidade próxima de Jericó, iam e vinham prestando o serviço sagrado.

Certa vez – a parábola conta – descia pela estrada de Jerusalém a Jericó um sacerdote e havia um corpo no caminho. O trecho era declive e propenso a assaltos, todo cuidado é pouco, muitas vezes preferiam vir em grupos. O sacerdote veio com sua fé, acaso tocariam num sacerdote! Deparou-se, contudo, com um corpo caído e de bruços. Talvez fosse uma armadilha dos assaltantes, não se via o rosto, se respirava, se vivo estaria. Se vítima, levaram-no tudo, até as vestes, o corpo estava nu, em desonrosa posição, avaliou.

Guardou de prescrição de pureza sacerdotal, há três metros de distância e de curiosidade coçando as barbas:

1)         Não deve ser judeu, por certo é samaritano, grego ou galileu.

2)         Se fosse cauteloso não seria assaltado assim ou preferiria morrer a se entregar.

3)         Deve ter algum pecado e mereceu isso – castigo, por certo, ele ou seus pais pecaram para ter tão desonroso fim, maldito.

4)         Pés sujos, deve ser da plebe mesmo, ralé, como esses cegos ou paralíticos que vivem incomodando no templo.

5)         Já chega, vi o que eu devia, não cheguei mais que três metros desse impuro sem alma, cadáver, assim amanhã poderei ministrar os sacrifícios rituais e não vou perder tempo com desconhecido…

O sacerdote não se aproximou e partiu a Jericó. Atrás vinha um levita com sua flauta, o qual vira de longe o sacerdote parado diante da vítima, concluiu:

1)         Se o sacerdote, com toda a sua autoridade e conhecimentos médicos, não socorreu nada há por fazer, porque ele sabe…

2)         Bem, claro que está morto esse peregrino.

3)         Deus é justo juiz – os sacerdotes nos ensinam isso. Se esse mal lhe aconteceu é porque alguma coisa fez por merecer. Aprontou algumas das suas, deve ser galileu.

4)         Ah, melhor eu ir antes que os assaltantes voltem. Nossa, vem vindo um homem mal encarado, ele tem pele escura, roupas árabes, pode me atacar.

A parábola conclui que o homem que chegou depois foi um samaritano. Claro que o ouvinte da época com noções e preconceitos do senso comum ia achar que o tal samaritano não ia prestar socorro. Não, este terceiro personagem, não judeu, não religioso, é que prestou socorro. O “bom” samaritano socorreu a vítima que bem podia ser um sacerdote, levita, grego, galileu, ou o próprio Jesus; e o fez definitivamente, levando-a a uma estalagem e se responsabilizando pelos custos.

Entretanto e finalmente, os copistas e tradutores preferem apelidar esta perícope de a parábola do “Bom samaritano”, em vez de mau sacerdote ou ingênuo levita, como aduzi neste singelo artigo.

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Camilo Irineu Quartarollo – Escrevente Judiciário, Escritor, diagramador, capista, ilustrador, editor e autor do livro A ressurreição de Abayomi entre outros

 

1 comentário em “Mau sacerdote, levita ingênuo e o bom samaritano”

  1. Adorei o sarcasmo e humor , nuca tinha lido essa parábola com essa análise , texto lúdico e lúcido. Jesus só queria ensinar ao intelectual sobre o que é amar ao próximo e quem é o próximo.

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