Camilo Irineu Quartarollo
Da velha casa, a cadelinha Pet era presente de uma tia velha, de uma ninhada de belos cães nobres. Ela era um mimo, com sapatinhos brancos e banhos de ervas diários. Sempre alegre, com pelos brancos e penteados com esmero. Tinha seus brinquedos próprios, um quintal extenso e casinha com seu nome em letras garrafais. Era uma aristocrata e a dona como uma dama de companhia, o dono um rei já velho, sem nenhuma voz ou vez naquele imóvel acastelado. Em férias a cachorrinha Pet desfrutava da acomodação de um hotel para cães de refinado bom gosto. Já crescidinha gostava de olhar os plebeus além das grades do portão.
A dona preocupava-se com Pet. Já estava na idade. Castrá-la? Ai de quem pusesse a mão na cachorrinha. Porém, um cão andava perdido por ali e a dona cismava que fosse o namorado da Pet. Um cachorrão feio, sem eira nem beira, meio tonto. Não tinha coleira para identificá-lo, devia ser mais um vira-lata. Cheirava, cheirava e ia embora, sem entender um palmo diante do focinho. Como a rua é publica não quis se incomodar, mas quando saía para compras via aquele cachorro por todo o canto. Logo cutucava o marido. Vê, é aquele enxerido do portão! O marido logo atentava para a sua resistência física, – que fôlego, hein! Era um perdido, a mulher ia desfiando o mau humor pelo cachorro. A primeira porta que se abrisse entrava, o primeiro prato de sobra comia, a um simples olhar já abanava o rabo e a um estalar de dedos já lambia o transeunte. “Mas é manso, querida! E ela revidava: “Nem tem glamour”
Na verdade, aquele cachorro era bem o alter ego do marido, já velho, naquele casarão de nobres pintados em papelão. Sentia que a mulher dispensava ao cachorro o mesmo tratamento que lhe dava. À mulher, o ingênuo cão lhe era uma ameaça. Ameaça? Sim, se a Pet ficasse prenha dele, nasceriam outros com o mesmo caráter, sem pedigree. Aquele cão preto e de olhar para o chão, fuçando a sombra não haveria de ser pai dos filhotes de Pet. Feito rainha velha ela arranjou um cão todo esnobe e pôs para conviver no quintal. Logo a cadelinha o procurou, mas ele a recusou pelo osso mordido de sempre. Nem aos carinhos da dona fez assediar-se à pretensa consorte.
Ao ver o vira-latas nas cercanias, ela orientou ao jardineiro a enxotá-lo, porém, não sabia a dona que o cachorro andara pelas bandas da casa do velho jardineiro também e a ordem não foi cumprida, mas preterida por um bom conselho – o cachorro via o velho e com um aceno dele ia-se embora. Outras vezes, o velho fingia que estava aparando uma roseira nos fundos da casa e deixava o caminho livre para os dois. A dona, se visse, vinha gritando impropérios e o velho encenava uma ameaça com alguma ferramenta que tinha na mão, zanzando numa corrida senil, desengonçado e lento, que nunca chegaria a tempo de impedir o pior ali entre as grades, enquanto o noivo arranjado da Pet dormia na sua casinha. O jardineiro era silencioso, discrição bela e misteriosa das coisas que não se explicam, como as sementes que crescem na sombra, entre pedras. De fato, no portão entre as grades, o vira-latas fecundou a Pet, dando-lhe filhotes brancos e pretos. A dona não quis os cachorrinhos. O jardineiro pegava-os, trazia-os às escondidas ao portão ver a mãe – estavam começando a latir e já tinham de se calar.
Camilo Irineu Quartarollo, Escrevente Judiciário, escritor, diagramador, capista, ilustrador, editor e autor de A ressurreição de Abayomi entre outros